Quem grande novidade vim eu aqui desabar: A escrita feita pela fome voltou a estar na moda!
Páginas e páginas de relatos invejosos arrasados por correntes de ar viciado. Mas não basta ter fome sabem? Não! - É preciso penar essa sofreguidão diante do mundo. Não basta somente a linha funda e sinuosa de uma consciência livre, o pé-ante-pé imponderável deste infindável amor pelas palavras, não. Tudo isto tem de ser medido, registado e cartografado até à exaustão. Para quê fingir tendenciosamente com a alma tudo o que as mãos já deixaram bem claro na genuína espontaneidade de um papel inconsciente? E atentem, que não me refiro apenas às zonas densamente povoadas onde todos deixam marcas mas acabam por dizer tão pouco; Se ainda menos esta fome fosse vista neste pequeno lugar aqui, e se todos levantassem o olhar do brilho das luzes e conseguissem ver mais além, no solo agreste dos bem saciados, talvez encontrassem tímidas linhas de passos arrojados, caminhados por anónimos calcorreadores esfomeados, que agora já se esqueceram até acerca do verdadeiro sentido da palavra fome. Ainda se ao menos isto fosse possível.
É que as palavras deveriam ser tudo, pois é por elas que nos aguentamos de pé, quando tudo nos urge a queda, em fraqueza. Pelas palavras tudo de bom agoiramos, e mantemo-nos suspensos no ar em infinita interrogação, mesmo apesar da fome.
Pois bem! Formem-se já batalhões de analistas desses trajectos, licenciem-se os cartógrafos desses misteriosos rastos; urge seguir estas almas e descobrir de imediato de que se alimentam, antes que sejam pisadas de novo e desapareçam. Também eu quero deixar de ter fome, viver na mesma nuvem onde esses vivem, e desaparecer também um dia, num silêncio bombástico. Eu tenho a mesma alma, o mesmo talento, a mesma ávida fome. O que me falta então?
No entanto, e para que não se ficcione a veracidade destes caminhos, o estudioso destas matérias deverá possuir uma de duas características que impeça que os seus próprios passos se imiscuam nos trajectos em estudo: ter algo de pássaro ou, em alternativa, de anjo; algo que mantenha o percurso intocado. Poderá o leitor mais cínico dizer que, se for pássaro, a atenção logo se virará para a mais gorda minhoca ou se for anjo, pouco ou nenhum interesse terá pelos assuntos terrenos, uma vez que sabe de antemão o destino de todas as coisas. Não senhor! Não é assim. Tenho fome e quero trilhar esses mesmos caminhos. Quem me levantará desta fraqueza colocando-me nessa senda?
Mas sabem, não estarão totalmente incertos no que deduzem. Por vezes a fome confunde-se tanto com a inveja, que chega a ser alvo de repúdio, logo descartada do interesse geral, atirada para um outro caminho mais sombrio, mais acanhado da curiosidade das gentes, e é aí que ela mais germina, mais cresce. Deixa de ser inveja, de ser até fome, torna-se furiosa pelo desdém a que foi votada, e mais cresce o seu perigo. Não se devia nunca ignorar as palavras dos que tem fome, pois algumas palavras quando querem, sabem voar, alçam asas e rapinam pelo mundo, com uma força imparavel de serem saciadas.
Mas não se apoquentem. Não há razão para medos. Quase todas as palavras tem fome, e só precisam do apreço de alguém para não se perderem. Estas, por exemplo, há muito que não se alimentam...
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