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O pior é que andamos todos ao mesmo.


Não receio grande coisa nesta vida. Nem tigres, nem bancos, nem doenças venéreas. O que realmente me suja as cuecas são as pessoas.
Casos concretos: Aquela pessoa que nunca deixa passar ninguém à sua frente na fila do supermercado, que bufa, urra e esperneia na ocupação esclarecida do seu lugar, ainda que, a outra, directamente atrás de si, traga somente um sorriso e uma embalagem pré-congelada de comida. Quiçá o jantar daquela noite, e a primeira, transborde o espaço recto da mesma linha com a obesidade do seu carrinho de compras. Sim, isso é o que mais me assusta. Tremo todo sem parar. A debilidade do gesto humano, a fatalidade fúnebre do mero gesto cortês.
Por exemplo, quando nada nos impede de deixar entrar mais um carro na fila de trânsito, até estamos a relaxar com aquela musiquinha na rádio, mas não o fazemos, pela mera impunidade de sabermos que podemos. Ou, quando vemos um velho, demasiado cansado destes dias, a tremer, agarrado a um varão, numa carruagem do metro, e não nos levantámos nem sequer por pirraça, apenas porque achámos estranho fazê-lo. Um velho é um velho, e os velhos estão a mais. É isso que me assusta. Essa frieza tão grande. Esse constante retorno à História.



E que dizer sobre os pobres? Pobres, mas pobres mesmo. Os mendigos, os sem abrigo, os rejeitados. Subimos todos aos céus quando pensamos nos pobres, quando lhes dedicamos uma parcela da nossa vida, uma ínfima parcela. Sentimo-nos parte do universo Marvel. Heróis! - Querida, pensei num pobre hoje. Num tipo sebento e taralhoco que passou por mim hoje na rua. A sério? Mesmo ao meu lado, quase me tocou na manga do casaco. Foi demais. Nunca tinha estado assim tão perto de um. - é quase um milagre da indigência galopante. Porém, baixamos as cabeças quando os vemos, fugimos para longe, atravessámos a rua, fingimos ter o carro estacionado no outro lado do parque do Continente, emulamos o proverbial gesto negativo de "dar", que ensinamos aos nossos filhos: É para a droga Rodrigo, ou, estão bêbados ou são ciganos ou romenos, ou apenas, são loucos. 
Mas, no final acabamos por dar, gratos por nos sentirmos no lado certo desta transacção. Sim, são loucos por se acharem no direito de nos pedirem uma esmola, e secretamente pedimos nós tudo por tudo, para nunca sermos iguais a eles. Dar, é a nossa única redenção, e nada tem de cristão isto, é o terror do karma que nos impele. - Eu até cheiro bem, dentro dos possíveis, passo roll-on nos sovacos, e pulverizo-me de manhã cedo. Eu tenho sítio certo onde habitar. Não tenho dinheiro, quase não tenho comida, falta-me a dignidade de outrora, mas, pelo menos não sou pobre, e até dei um Euro áquele tipo que me cuspiu na rua. - Mas somos! - De repente, sem querermos, somos todos pobres, e ignorantes também. Sem querer, glorificamos ideias rídiculas, porque julgamos tratarem-se dos "outros", os pobres, coitados. Quando também nós debulhamos um dia á dia espartano.
Quando o pânico atravessa a ideia de se fazer algo, não tarda nada, transforma-se no desafio de o fazer realmente. Ainda assim, continuo desassossegado com as pessoas. 
Ao almoço escondem-se em farrapos, levantam alimentos das mãos caridosas dos outros, e fogem rápidos para o carro. Sempre encapotados claro, que ser pobre é uma vergonha, e depois de tarde, sentam-se nos cafés, nas esplanadas, e lamentam-se por serem destituídos, desempregados, desalentados, desprovidos de dignidade. - Pelo menos não são pobres! -
Em caso de emergência não faz mal partir a redoma fria que nos encerra. O que mais me assusta nas pessoas, também é esta vergonha, este medo contricto. O que mais me assusta é este pânico que morre para dentro, e nada alavanca, nada perfaz em vontade de ser melhor.
Recorda-me uma curiosidade acerca de uma tribo africana; os Masai. Quando os colonos ingleses os prendiam numa cela, por qualquer crime que tivessem cometido, os Masai inexplicavelmente, não tardavam a morrer nesses calabouços, pois não compreendiam que a permanência naquela cela estaria limitada a um tempo. Como imaginavam ser permanente, morriam, pois não conheciam outra realidade senão a de serem livres. 
Dá que pensar. Quanto tempo irão durar estes tempos de agora? Quando iremos perceber a nossa pobreza efectiva, e iniciar a longa marcha até à redenção? 
Se somos pobres hoje, alguém por oposição, há-de ser rico. Se é certo que ninguém se farta de ser rico, quando é que nós nos fartaremos de ser pobres?
Isto deixa-me todo cagadinho de medo.
Assustam-me as pessoas que atropelam os mendigos e olham gulosas para as montras das lojas, com o consumismo na cabeça. Assustam-me, porque algumas delas poderiam ser iguais a mim, assustam-me, porque a maior parte delas até são. Assustam-me porque eu não quero ser pobre, ou sem abrigo, nem rico, ou afluente ou remediado, quero dignidade no meu país, quero abundância sem consumismo desenfreado, quero a utopia que cabe certa na cortesia de oferecer e também na vontade de receber. Quero!
Quero comprar da nossa fruta e do nosso peixe, e deixar os idosos atravessarem com calma nas passadeiras. Quero ver sorrisos na rua e não na televisão, e quero também que se apanhe dos passeios os poios dos cães. Chega de esmolas por caridade, podemos ser pobres mas somos gente também, e somos gente que morre aos poucos sem bem perceber porquê. Basta! Não quero morrer de pânico nem de fome nem de ignorância, só quero o meu país de volta! 

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