No sábado estive presente na inauguração da excelente exposição de pintura do meu amigo Helder Sanhudo, no Centro de Memória de Vila do Conde, que aconselho a todos que visitem, pois estará aberta ao público até 24 de Fevereiro do próximo ano.
Como tive a honra de a apresentar, a seu convite, e como me sinto tão orgulhoso por me poder associar a um evento tão interessante, deixo-vos aqui o texto que li nesse dia. Espero que gostem.
"Percebo pouco de arte, mas percebo
tudo sobre aquilo que me dói e sobre aquilo que me faz feliz.
A meu ver, o trabalho do Helder constitui-se
de uma tendência escancarada para a ternura e para a sua percepção em gestos
que nos fogem da ideia. Acuso-o de ter uma sensibilidade aflorada e a mania de
transformá-lo em poesia. Tem aquele gosto perturbador pelas coisas simples,
que, na minha opinião, sempre serão as mais belas de todas.
Quando criamos, sonhamos. E quando
sonhamos, chega um tempo em que queremos inevitavelmente partilhar as nossas
criações; talvez, porque queiramos ser amados, talvez porque existe uma
necessidade interior imperativa em alguns de nós. É a sina de todo aquele ser
humano, que decide fazer o desvio pelo trilho menos percorrido. E é, assim, que
se confirma que a arte tem como corolário a partilha do amor e da morte,
através da única forma possível: mostra-la.
Os artistas estão cheios de
sabedoria e os seus quadros duram eternamente, são como os ensinamentos das
pirâmides. Os pincéis são os seus filhos e a tela a sua esposa. Pronuncia-se o
seu nome por causa da beleza que fizeram durante a vida. A recordação dos seus traços
permanece para sempre. O artista edifica asas nos corações daqueles que queiram
ser livres e voar.
Mas, a arte é um mistério
impenetrável, não cabe na razão lógica e qualquer tentativa de a desmontar será
sempre inútil. Se fosse possível desmontá-la não seria arte. Permanecerá para
sempre secreta e insondável. Pode bordar-se um sentido em seu redor mas sempre
fora da muralha. Nada tem que ver com a inteligência, com a razão, ou o
raciocínio dedutivo: existe em si mesma, por si mesma e para si mesma, apenas
permeável ao inconsciente e, no entanto, ao tocar-nos no inconsciente, consegue
por vezes, mudar a nossa percepção do mundo e de nós mesmos em consequência de
um mecanismo que nos escapa.
Só o mistério nos faz viver e, em
raras alturas, basta encostar-mos o ouvido às coisas e a nós mesmos, e apercebermos
disso.
O medo de saber tudo apavora-nos.
Não precisamos de perceber a arte, somente meditar sobre ela e senti-la.
A meditação tem menos a ver com
fazer silêncio do que, pelo contrário, com estar muito consciente dos ruídos -
exteriores e interiores - que nos cercam.
Entendam uma coisa: é a mão que pinta,
mas é o corpo inteiro que paga caro, o cansaço físico de cada dia, de dias
infinitos que só terminam quando a obra é exposta, e absorvida por outros olhos.
Para além disso, ao corrigir, metade do que se faz, mais de metade do que se
faz, desaparece em camadas de tinta e sangue, até ao resultado derradeiro, que
nunca é final. Demasiada carne, demasiada gordura até chegar ao osso.
Isto aparentemente, não significa
nada e, no entanto, faz-nos vibrar como cordas. Pensarmos num quadro nu,
desprovido da sua armadura, e em todo o processo moroso decorrido até esta
cobertura de luz e formas que que nos surge diante dos olhos. É cativante. Julgo
que, até hoje, foi Pitágoras quem mais se aproximou da compreensão visceral da
criação. A gente vê-a, sente-a a um pequeno passo da solução e dá fé que esse
pequeno passo nunca será esboçado, porque não nos é possível avançar. É por
isso que interiormente, lanço sempre agradecimentos secretos aqueles artistas
que me fazem esquecer o tempo, e me deixam às portas da compreensão quase
absoluta dos mistérios da beleza.
Portanto obrigado, obrigado Helder por
este acerto de dias, de horas (que para ti foram insónia e agora nem cansaço são),
porque às vezes perdemo-nos e desarrumamos o tempo, antes de arrumarmos tudo
outra vez, e nem sempre um lugar desarrumado é incómodo. Obrigado por me
deixares acertar os meus dias pelos teus, e pela música que fazes com as tuas
formas e cores.
E á medida que o silêncio volta a cair
sobre mim, deixo de existir para me enrolar neste corpo em movimento, que os teus
traços acenderam e, em breve, tornar-se-á impossível distinguir-me de qualquer
outro olhar que tenha pousado nesta exposição. Estes momentos derradeiros são
para deitar fora o que é supérfluo, falso e acessório. Resta-nos ver o fundo, o
coração e os abismos.
Mesmo que a maior parte dos homens
tenha ensinado a saudade a resistir às lágrimas, ainda assim, elas não se detêm
quando são precisas. Talvez vos pareça melodramático, depois me dirão no fim.
E assim é, o meu trabalho está
praticamente terminado. O resto fica por vossa conta.
Se ainda houver pessoas que olham o
que foi aqui construido como sendo difícil de entender é porque não compreendem
a complexidade da vida, e isso não é culpa do artista, mas defeito delas.
A função da arte, de todas as artes
concebíveis, é a de desenhar portas onde existem paredes, e depois, deixar que
todos as possam abrir por si mesmos."
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