Excerto do Romance, por publicar, "Duas Vidas Sem Importância" - Para aguçar o apetite a quem interessar
(...)
Anos depois, o filho de Remédios, Jeremias Bruno, levou a
cabo esta destruição do inexplicável, sem pressa e feita ao seu método. Mil
vezes Jeremias fazia recordar o motivo por que a mãe o elegera como predilecto.
A razão para tal favoritismo nascera de uma paixão sua que tanto a encantava: a
frenologia.
Eu explico; Jeremias, da prole escorregadia que deslizara das
ancas de Adosinda, fora o único nascido com um travo adocicado de inteligência
e apego familiar. Muito cedo na sua vida, fizera aquilo que todos sempre
ansiáramos fazer; partir. Sem ter um centavo no bolso, rumou à América, estudou
a fundo esta ciência caduca, que reivindica ser capaz de determinar o carácter
e personalidades humanas, pela observação aprofundada da forma da cabeça, mais
concretamente, dos seus altos, ou caroços definidos, e, adornou-se com o título
de sumidade científica em três partes: Primeiro, por ser estrangeiro, Segundo,
por já poucos saberem definir, ou compreender quanto muito, o que raio seria
aquela coisa da frenologia, e, por último, porque, o estudo de tudo relacionado
com o cérebro soava a tão avançado e científico, que mesmo sendo uma ciência
desacreditada, ninguém foi capaz de o contradizer ou desmascarar.
Ganhou fama e fortuna, analisando cabeças descobertas, nas
feiras e casinos de Atlantic City, e a sua credibilidade, muito embora nunca
assumida pela comunidade científica, que, basicamente o votava à mais absoluta
troça desbragada, cimentou-se ainda assim, na população em geral desta cidade
de perdição.
A grande falha de carácter de Jeremias foi ser português e,
querer retornar cedo demais ao seu país, esperando a prossecução aqui, da sua
recém-conquistada glória de frenólogo excepcional, que inexplicavelmente alcançara
no novo continente. O que ele não contou foi com a irredutível desconfiança
férrea do comum cidadão português. – Foi, efectivamente, a sua perdição. –
Distribuiu tudo o que possuía pela família ou esbanjou-o com mulheres de fácil
trato. Afeiçoou-se a uma, e daí nasceu um rapagão, Cassiano Bruno. Em pouco
tempo, encontrou-se quase falido, habitando um tugúrio abandonado na tapada
verdejante de Sant’ana, perto da ponte dos caminhos-de-ferro. Sem ter forma
como sustentar o pequeno a tempo inteiro, acabou por o entregar aos cuidados do
seu bisavô, Luís Bruno, que graças ao negócio próspero da farmácia, vivia desafogado.
Ainda assim, pelo verão, Jeremias percorria as festas e
romarias deste país feito de ânsias e saudades do passado, e, por estupefacta
estupidez das gentes lá fazia modestamente vingar o seu negócio.
Brilhou, quando a mãe lhe suplicou uma intervenção de
emergência em alguns membros da família e sucedâneos. Chamo-lhes sucedâneos,
porque não eram do sangue dos Bruno, conquanto as substâncias substitutas aqui serem
químicas, do foro emotivo, pois, ainda que não estando directamente vincados
por laços sanguíneos, ainda assim, haviam tido sempre uma importância circunstancial
em relação à mesma. Eram estes nomeadamente: Os dois Vascos, o primeiro e o
segundo, que já partilhava meio sangue com a família, e finalmente, Lurdes. –
Eu havia sido liminarmente excluído desta curta lista, por ser considerado
manipulador, um louco pretensioso, e inteiramente um indivíduo com falta de
boa-fé. Depois do Luís, nenhum outro membro dos Bruno alguma vez se dignou a
dirigir-me a palavra.
Mas, terá sido realmente aqui, que Jeremias atingiu o seu
ponto mais alto. Ocultou as notas do pagamento debaixo da camisa, como se
guardasse uma companhia para o sonho, arregaçou as mangas e lançou-se sobre o
crânio de Lurdes como um abutre esfaimado, abrindo veios nus por entre os seus
cabelos com a ajuda de um estranho instrumento metálico que se assemelhava a um
compasso curvo, com dois bicos afiados nas pontas. O que mais lhe chamou a
atenção, foram as protuberâncias de solidão na cabeça de Lurdes. Parecia –
disse depois – uma criança de catorze anos, acostumada ao desânimo, viciada na
tristeza, amuralhada numa solidão confinante, que vivia encerrada no corpo de
uma mulher de cinquenta. Assim o era na altura.
Soltou-se o pasmo na audiência,
como se tivesse feito uma extraordinária descoberta. – Tontos!
Para quem tenta perceber estas causas ocultas que a razão
humana não pode entender, como eu, aquela explicação do inexplicável, pouco ou
nada contribuiu para a construção de uma solução sobre o estado de Lurdes. Mais
próximo estaria o esclarecimento astrológico daquele mal-estar, do que propriamente
a pretensa “análise” científica de Jeremias Bruno, porém, a imerecida
justificação tudo esclareceu para os presentes, inclusive o próprio sujeito da
experiência, e, suponho, que para a fútil razoabilidade humana, é tudo quanto
basta.
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