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Uma janela com vista.


Vivo num apartamento que flutua no espaço, mal enraizado no sopé dos novecentos e noventa e nove arcos de pedra que rasgam o horizonte da minha terra. Vagueio aqui, encerrado, de cabeça perdida, por dias a fio, na janela flutuante que me agarra as ideias à acalmia constante daquela praça deserta. E só a passagem momentânea das gentes, lá em baixo, me faz sentir que existo de facto, neste mundo. O tempo restante é feito de sonhos, de sonhos e de palavras, que me trazem as memórias do passado. Vivi assim, quase sem tempo real, até à altura em que tu apareceste.

Não foi de propósito, eu bem sei, tinhas o silêncio dos anos do teu lado e apareceste-me como uma imagem momentânea de perdição. O que achei mais grotesco em ti, foi estares ali ao meu lado, sem aviso prévio. - Bem sabes que gosto de tudo organizado até ao mais infinito grão da matéria. - Lembras-te do que nos disse aquele médico? - Ela não se lembrava.
- Vim ver-te porque soube novidades sobre ti, por um amigo. Tive de vir.
Achei aquilo ainda mais misterioso do que a sua própria presença.






- Um amigo, quem?
- Tu não o conheces.
- Não devias ter aparecido, não agora.
- Não agora, porquê? Não estás contente por me veres?
Que grande chatice. Tinha logo que me trespassar com aquela pergunta. Bem, suponho que a culpa em parte é minha. Em parte completa aliás, e eu assumo-a. Nem sei bem o que lhe dizer neste momento. Só sinto um ebulir interno, pois conheço muito bem as estranhezas do meu corpo. Fervia ainda cá dentro por ela. E o tormento retomara o seu curso.
Tina razão em sentir-me assim. Adelaide despia-se em vagas lentas de gestos morosos. Era o seu jeito peculiar de ajuizar prontamente a disposição dos homens que ela queria. Com a maioria, bastava-lhe cair uma ou duas peças de roupa, daquelas menos provocantes, como um casaco ou um cachecol, e eles rendiam-se num pranto. Era sobretudo a forma lasciva como ela os fazia sentir. Descaindo o queixo e arregalando os olhos à vista daquele fogo que ela emanava. Não sei se devo mostrar orgulho ou renunciar de vez à minha masculinidade, mas confesso que, comigo, só se deteve no desprendimento profundo da mais absoluta nudez. É verdade. Só sucumbi quando já não havia mais nada para tirar, só a pele. Cada novo gesto seu, era sempre um jogo de verdade ou consequência, mas, Adelaide não estava interessada na verdade, logo, por cada palavra proferida, iniciava o jogo, despia-se peça a peça, em pequenos movimentos transversais, como se de uma cebola humana se tratasse.
Bem que intentei refugiar-me no bojo luminoso da janela. Procurava ajuda do exterior: - Socorro! Estou a ser violado pela nudez maravilhosa de uma promíscua mulher linda. - Que grande treta. Regozijava-me em cada momento de pele que ela me revelava. Queria te-la completamente despojada na minha frente, queria retribuição pelos erros do passado.
- Já te disse...
- O quê? Incomoda-te isto?
Rezava uma prece muda, uma prece profana e feita à pressa, ante o púlpito intumescido daqueles seios carentes, que se aproximavam de mim, ameaçadores, impunes.
- Que raio de altura para isto Adelaide.
- Nunca te soube crente ou casto. És o quê agora, católico renascido? Não te conheci assim.
A minha mão incauta, chegava-se mais e mais perto, porém, os meus olhos fincavam-se lá em baixo, nos da D. Cidália, a velhinha, vizinha aqui do lado, que cumpria a sua rotina antes da novela da tarde, de se sentar no banco da praça, aqui defronte, e ver o tempo correr, devagar. Uma menina passava naquele instante, arrastava uma mala rígida, azul e com rodinhas, pelo empredrado agreste da praça, o roer das rodas no paralelo fazia um ronco eterno que não me abandonava os ouvidos. Não queria que me abandonasse. Dois cães, soltos da trela dos seus donos, cagavam sem regras, na relva gasta, acastanhada pelo fénico da merda. Tudo me atraía em demasia, roubando-me a atenção daquele corpo nu, ali na minha frente, pois não quis que ele fosse mais que uma perspectiva do passado. Raios!

- Malditos cães. Malditos não. Porra, coitados dos cães, que culpa tem eles? Um cão tem de evacuar, como todos nós temos, não é? Malditos donos, isso sim! Será mais correcto fechar os rafeiros em casa, ou deixa-los à solta a libertarem o intestino pela relva alheia?
- A sério? Vais perder-te em considerações sobre o cócó de um cão, estando isto aqui na tua frente?
Aquele corpo nu era inegável. Eu bem sei que era. Rais me parta se não era. Quase impossível de lhe resistir. - Continuarei eu a observar a inércia mitigante da espiral de merda de um cão, tendo aquela nudez absoluta na minha frente?
- Sim!
- Sim, o quê?
- Tu sabes lá do que são capazes estas pessoas e os seus cães, aqui mesmo, nesta praça. Eu sei. Eu moro aqui, entendes?
A D. Cidália olhava para cima, para esta janela, para nós, não queiram lá ver. O vento afrouxava as janelas e encrispava-lhe o olhar num raio negativo vertical. E se lhe ocorresse descrever aquela inocente perfídia de nudez à minha mulher? E se o fizesse com palavras que descrevessem uma verdade que já não existe sequer? Tudo é possível na cabeça de quem vê e não sabe.
- Adelaide, faz poucos dias que o Cristo foi pregado à cruz...
- O Cristo? - Insurgiu-se ela num só fôlego. - A sério? Sabes de uma coisa, que se foda o Cristo! Queres-me novamente, ou não? Isto está aqui... - Insistia ela apontando-me o busto com as mãos sequiosas, que ritmavam um toque sedoso por aquele corpo imenso.
- Que se foda o...? Como és capaz de dizer tal coisa? Não acredito que tu disseste isso.
- Sou capaz sim, sou muito capaz de dizer isto, e muito mais até. O que é estranho é a tua atitude. Não me ponhas à prova Jorge. Estou aqui, agora, na tua frente, mais nua que o próprio Cristo...queres foder-me, ou não? É uma simples pergunta.
Pois era. E eu queria. Que grande chatice, não havia coisa naquele momento que eu mais quisesse, senão ignorar o olhar reprovador da D. Cidália, os dejectos dos cães, até mesmo o próprio Cristo e cair-lhe em cima como uma força demoníaca imparável. Eu queria, Meu Deus, como eu queria. Não queria outra coisa nestes momentos de solidão.
- Estamos na Páscoa Adelaide, na Páscoa sabes? Aliás, o que raio é que tu vieste cá fazer depois de tanto tempo sem dares notícias?
Não a via faz mais de dez anos, e podia ver como os traços adultos já lhe borravam a face infantil. O corpo não. O corpo da Adelaide foi sempre adulto. Quadris tensos, costelas curvas, ombros curvos. Pele fina, adornada com formas mortíferas.
- Até aceitaria se me continuasses a dizer que amas a tua mulher. Mas, a Páscoa! É essa a tua desculpa?
Encolheu-se de imediato, num jogo enorme de mãos que lhe cobriram o corpo inteiro.
- A Páscoa? - Repetiu-me depois.
- Sim, a Páscoa! - Exclamei. - Tu queres que eu te salte em cima, como um coelho dominado pela luxúria, é isso? Tu queres isso..
- Saltar-me em cima? Tu mudaste Jorge, nunca me falaste assim. Cala-te! Vim cá hoje para saber de ti. Não vim para me oferecer a ti.
- Eu...Bem, olha que não parece.
- Tu és, tu continuas a ser o que sempre foste.
- Sabes bem que sempre te desejei, tu sabes isso, tens de saber isso pelo menos.
- Desejo? Raios, se fosse isso que eu procurasse não tinha feito este caminho todo até aqui. Não falta desejo lá pelos meus lados.
- Então o quê? Que razão poderá haver para teres vindo cá hoje? Amor? É disso de que me falas? Eu...
- Chega Jorge, pronto, eu vou-me embora. Percebo que foi um grande erro ter vindo cá hoje. Tu continuas igual a ti mesmo. Um covarde fingido! Pior até, um covarde renascido num cristão fingido.
Devia explicar aquilo tudo, mas não quero, tenho medo de descobrir que seja tudo verdade. Adelaide sentiu uma náusea estonteante que lhe trespassou o corpo inteiro. Foi como ver um filme às avessas. As peças de roupa largadas pela carpete da sala, voavam sozinhas de volta ao seu corpo no espaço de um ápice. Parte de mim, a maior parte de mim, queria que elas não tivessem ganho vida própria. Sentia saudades daquele corpo que me fez ser homem, mas, ela tinha razão. Ela tinha razão em tudo. Eu fui um covarde, sou um covarde. Barrei o destino quando este se desenvolvia perante os meus olhos. Senti-me livre e íntegro, na altura, por ter feito o que fiz. Por ter trocado a paixão pelo amor. Fazia todo o sentido. Nós não fomos feitos um para outro. Eu sou demasiado picuinhas, e ela...Meu Deus, como eu fui feliz há dez anos atrás!
- Adelaide, vai-te embora, sim. É melhor que te vás embora, mas antes, tens de me dizer o que vieste fazer aqui hoje. Lembraste do que nos disse aquele médico? - Ela não se lembrava.
Mas eu sim.
Voltáramos ao início. Ela totalmente vestida, eu, absolutamente despido de remorsos sobre aquele passado. Baixei as calças, sentei-me na cadeira, corri o estore e esqueci a praça e o olhar mordido da D. Cidália. Não pude mais negar aquela fervura que me acalentava as entranhas. Precisava de um pouco de doçura a escorrer-me pelas mãos, de um prazer súbito, mesmo que fosse ficcionado. Afinal de contas, estávamos na Páscoa, e não me podia esquecer da entrega à vontade de renascer. O ímpeto da ressurreição espontânea foi rápido e prazenteiro, como aliás, contei que fosse. O resto da família saíra cedo para o piquenique, deixando-me aqui, a ver o movimento brusco das árvores lá em baixo na praça deserta. Eu quis ficar aqui, porque faço-me de solidão quando preciso dela. Quem me dera não viver neste lugar.






Comentários

  1. Se isto é o início de um novo conto, é um início muito bonito, como de costume, já promete uma grande história!...

    Dina

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  2. «Vim ver-te…» porque sei que me trazes sempre o mundo nas palavras. E que mundo, que delícia! Aqui, nunca me desiludo.
    Beijinhos

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