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O dia da feira.

Acordam mais cedo do que o sol da manhã, partem somente pela altura do seu recolher, e, quer maculados pela canícula do calor, quer crispados pela sofreguidão do frio, aqui estão, sem falta, todas as benditas sexta-feiras, pelo menos, desde que tenho memória de tal. 
A cidade inteira parece transfigurar-se numa outra, neste dia, semana sim, semana sim...em serenos sobressaltos que perduram. Será quiçá uma rotina, haver uma feira aqui todas as semanas, uma rotina que nasceu no tempo em que ainda se vendiam cavalos, bois e outras animálias de grande porte a céu aberto, mas que, evoluiu depois, tornando-se numa necessidade para alguns, um prazer para muitos. É certo que, ainda se vêem patos e galinhas e perus e coelhos, prostrados em gaiolas, acometidos ao irrisório aprisionamento de um cesto de vime, ou meramente espalhados pelo chão empedrado, açaimados pelas juntas das patas com um infeliz fio de cordel grosseiro. Sim, eles ainda lá estão, toldando-nos a comiseração, ou o apetite, quem sabe. Há quem não se lembre de ir a um talho, ou a um supermercado comprar um peito de frango, em vez disso, vão há feira. Aí fazem as suas escolhas com especial entalhe de minúcia, compram-nos vivos, e soltam-nos no capoeiro, fazendo fé para que a vida lhes corra pelo melhor, e que cresçam, viçosos e gordos, pelo menos até que um almoço de domingo lhes dite a hora do fim. Estas pobres criaturas, ainda aqui se encontram, a lembrar outros tempos mais simples, em que os carros de bois faziam fila em redor do terreiro da praça, e enchiam-se de sacos e cestas, fazendo provisões do que podiam, até que uma outra altura mais propícia chegue, e os traga de volta há feira da vila. 


É verdade que, agora, o que cerca o gado vivo, são os pechisbeques e os tachos e panelas de aço inox, de um lado, a marcenaria de qualidade duvidosa de outro, e a abarcar tudo, um estridente rio de grosso caudal, que carrega consigo todas as peças de roupa, conhecidas pelo homem. Verdadeiras ou contrafeitas, isso de pouco interessa. Quem lhes aponta os defeitos aquele preço? Mas também, quem pode comprar um par de calças da Gucci noutro lado qualquer? E, não é verdade também que, a um passo ao lado, se pode adquirir aquele carrinho de brincar, feito de folha antiga, que nem os chineses conseguem duplicar? Onde mais o poderá encontrar, só mesmo aqui. Mormente que, de tempos a tempos, este eirado seja varrido por uma onda insalubre de fiscalização pouco cega, o certo é que, os feirantes e os seus produtos, são quase como os bandos de aves. Alçam voo à sua passagem, planam na curta distância e voltam a pousar assim que estes partem. É um ciclo que todos conhecem, e com o qual todos aprenderam a conviver. Assim é, e eu já nem consigo imaginar a minha querida cidade sem a presença deste convívio semanal, esta invasão que a toma por inteiro, este bulício fervoroso, que traz as gentes das aldeias até aqui, espalhando-as pelas ruas e pelas praças, pelos serviços, como se só o pudessem fazer neste dia.
Sim, porque o dia de feira, nem só do mercado se trata. Também dele vivem os bancos, os correios, e os homens dos seguros, os cafés, pastelarias e os restaurantes, até os juízes e a repartição das finanças sabem que é sexta-feira. Vila do Conde inteira se levanta neste dia, preparando-se para a invasão dos bárbaros, e alegra-se por isso.
Lembro-me de, em miúdo, viver o dia de feira, como se se tratasse de um dia de festa. A minha mãe saía muito cedo de casa, ladina no andar, puxando o seu carrinho de duas rodas, revestido com um padrão xadrez, vermelho e preto. Deixava-me o pequeno-almoço pronto, na mesa da cozinha, e saía para a feira, e não se podia atrasar, não fosse alguém chegar primeiro e escolher os melhores produtos antes dela. E eu aguardava-a, repleto de uma ansiedade inocente que só uma criança desses tempos já idos compreende. Quem sabe o que aquele carrinho poderia trazer naquele dia. Normalmente vinha abastado de legumes, ovos, carne e peixe, mas, por vezes, oh sim, por vezes, as mães gostam de nos mimar, e não existe regalo igual a esse. Um pequeno brinquedo, um pastel escondido num embrulho discreto, entre o saco dos ovos, e num instante, o dia de sexta-feira transformava-se no melhor dia da semana. Havia uma estranha magia a trabalhar ali, havia amor naquele gesto simples.
Toda a casa se revirava do avesso neste dia. Enchia-se o frigorífico e os armários da despensa, e sentíamo-nos todos como reis, pela sorte que nos calhava. Comia-se peixe fresco à noite, marmota ou raia, e ao almoço, havia rojões. Que beleza de dia.
Digam o que disserem, garanto-vos que agora já não é a mesma coisa. Fazemos visitas aos supermercados, como se fossemos ao dentista, vamos quase que obrigados, por temos aquele desconto imperdível a resgatar, e acabamos por comprar muito e mal, excedemo-nos sempre, e quase nunca nos apercebemos disso. Temos um carro para encher, e a mala de um automóvel lá fora, onde cabe tudo, desde que a porta feche, ou quanto muito, encavalitam-se os miúdos, e atafulham-se também os assentos com o resto. Mas sabem, aquele carrinho de duas rodas, só carregava mesmo o que lá coubesse, justo até ao topo, talvez se pudesse trazer mais um ou dois sacos na outra mão, mas, mais do que isso, seria um exagero, e além de tudo, na semana que vinha, haveria dia de feira novamente. Era uma certeza, e o deslumbre das maravilhas deste dia, voltaria a atingir-me novamente.



Comentários

  1. Belo texto em que perpassam as memórias de outros tempos, confrontando com os dias de hoje. Dicotomia entre um comércio de proximidade, convivial mesmo e o de hoje, ditado pelo "progresso" e pela atratividade de espaços habilmente preparados para o consumo, mas circunstancias!
    Bjo :)

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