Muito lentamente, aproximo o pequeno copo, oblíquo, ao centro da minha boca. A outra mão, mais triste ainda, faz circunferências desinteressadas sobre o prato florido que acolhe a rabanada que escolhi para comer nesta noite.
Por instantes, atravesso o olhar pela janela azul, que já não mostra bem a cor do dia, mas, que ainda não recebe todo o breu da noite. Sinto uma enorme falta de agasalho no corpo, cerro os olhos e sei que não é frio aquilo que sinto. A memória conhece estes gestos, estas tremuras, mas faz de propósito por olvidá-los, mistura-os sem pressa no desfiar deste tempo, deste dia, certa de que já não importam tanto como quando era menino, e mais ainda, pela metade grande da minha vida. A memória sabe que já nada é igual, e o corpo corresponde, obediente, caindo numa apatia de desânimo.
Por instantes, atravesso o olhar pela janela azul, que já não mostra bem a cor do dia, mas, que ainda não recebe todo o breu da noite. Sinto uma enorme falta de agasalho no corpo, cerro os olhos e sei que não é frio aquilo que sinto. A memória conhece estes gestos, estas tremuras, mas faz de propósito por olvidá-los, mistura-os sem pressa no desfiar deste tempo, deste dia, certa de que já não importam tanto como quando era menino, e mais ainda, pela metade grande da minha vida. A memória sabe que já nada é igual, e o corpo corresponde, obediente, caindo numa apatia de desânimo.
Daqui a nada, a família vai querer levar-me a ver a chegada dos Reis por entre o bulício do pequeno adro da igreja da Lapa e arredores circundantes - Temos de ir, é tradição. - dizer-me-ão os meus filhos. Eu lá irei arrastado, feliz somente por saber que os meus filhos mantêm aquela expressão presente: - É tradição.
Penso apenas se o dizem porque todos os anos o fazemos ou porque se lembram de lhes ter falado sobre outra tradição, mais íntima e nossa, uma coisa Crica dos Teixeiras directos. Penso na justiça de lhes remexer na memória e falar-lhes novamente da avó que mal conheceram, sobretudo nesta noite, a dos Reis.
Penso apenas se o dizem porque todos os anos o fazemos ou porque se lembram de lhes ter falado sobre outra tradição, mais íntima e nossa, uma coisa Crica dos Teixeiras directos. Penso na justiça de lhes remexer na memória e falar-lhes novamente da avó que mal conheceram, sobretudo nesta noite, a dos Reis.
É que, na casa onde eu nasci e cresci, a noite dos Reis cumpria uma outra tradição: a celebração de mais um aniversário de casamento dos meus pais, e, esse singular momento anual, trazia o Natal de volta mesmo no finzinho das festas da quadra, quando quase já se desfazia o pinheiro dos enfeites e a promessa daqueles momentos de pura comunhão familiar já eram remetidos para o ano seguinte.
A tradição aqui, nunca foi bem a que existe de facto, pois, nunca se abriu a porta da casa à passagem dos três magos, para lhes ouvir os cantares cansados, nunca se preparava uma mesa de ofertas para lhes apaziguar a voz e os estômagos, também pudera, estes nunca atravessaram a ponte, nunca galoparam para estas bandas, e só por vezes os víamos passar, lá de cima, do monte de Sant'ana, observávamos entre os tremeliques de frio, aqueles três pontinhos minúsculos a passarem em trote lento, lá embaixo, no outro lado do rio. Coisa rápida, tinha mesmo de ser, só para matar o gosto da fantasia de os ver a passar, porque nesta noite havia festa em casa, e aqueles homens desengonçados, trajados a veludo e com coroas de fancaria, nunca seriam bom substituto para os aromas e sabores que nos aqueciam a casa nesta noite.
A minha mãe voltava à cozinha e desencantava nova remessa de rabanadas, leite creme, aletria, e os frutos secos reconquistavam o seu lugar na mesa, nas suas travessas e tacinhas, e não haviam desculpas que justificassem a falta dos irmãos que já eram casados, e que, num ano estavam connosco e no outro com a família do cônjugue, não nesta noite. Esta não era a ceia de Natal, era um outro natal. A noite dos Reis era nossa, e não fosse pela falta das prendas alcantiladas em redor do pinheiro, julgaria mesmo que o tempo se atrasara duas semanas, e que o Natal retornara.
A minha mãe voltava à cozinha e desencantava nova remessa de rabanadas, leite creme, aletria, e os frutos secos reconquistavam o seu lugar na mesa, nas suas travessas e tacinhas, e não haviam desculpas que justificassem a falta dos irmãos que já eram casados, e que, num ano estavam connosco e no outro com a família do cônjugue, não nesta noite. Esta não era a ceia de Natal, era um outro natal. A noite dos Reis era nossa, e não fosse pela falta das prendas alcantiladas em redor do pinheiro, julgaria mesmo que o tempo se atrasara duas semanas, e que o Natal retornara.
Hoje, os meus pais celebrariam 68 anos de casados, e teria havido festa aqui em casa, pois é aqui que a fanfarra alegórica destas celebrações se acoita todos os anos. Quiçá não fosse mais possível que aqui acontecesse, nunca o foi de todos os modos, visto que a noite dos Reis não faria sentido em outro lugar, senão na casa dos meus pais.
Mais um ano passou, e esta noite tão especial regressou. Ouvem-se os cânticos pelo sistema de som esganiçado da igreja da Lapa, a noite caiu pelo frio adentro e apronto-me à tradição. Cada um de nós vive as suas memórias da forma menos dolorosa possível, eu não sou excepção; afasto o cálice de vinho do porto e a rabanada para o lado, e vou para a cozinha tirar um café enquanto falo com o meu pai ao telefone. Ele é a metade desta tradição que ainda me resta, depois dele só resistirá nos corações dos Teixeiras mais Cricas.
Comentários
Enviar um comentário
Este é o meu mundo, sinta-se desinibido para o comentar.