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O Natal da Sra. Mascarenhas

Eram doze horas. A pequena cidade acabava de se deitar, muda e negra, debaixo de uma chuva gélida de Dezembro. Na rua da fraga, uma das mais estreitas e mais desertas, desta cidade que lançou tantos barcos ao mar, uma janela continuava iluminada, no segundo andar de uma velha casa, cuja caleira rota largava torrentes de água no empedrado milenar.
Era a senhora Mascarenhas que velava diante de um fraco fogo de uma luz mortiça e empoeirada, enquanto que o marido desfalecia, à claridade pálida de um candeeiro.
A habitação, alugada por cento e poucos euros por mês, compunha-se de quatro enormes divisões, que se não conseguia aquecer no Inverno. A senhora Mascarenhas, dormia na maior; o marido, o Coronel Mascarenhas, outro único ocupante daquele mausoléu, ficara com o quarto que dava para rua, junto à sala de jantar, no seu leito de ferro, para que pudesse ver o céu, antes do último estertor.
Os poucos móveis dos Mascarenhas, uma mobília Império de mogno maciço, que as contínuas mudanças de guarnição tinham amolgado e feito cair os ornatos de cobre, desapareciam sobre os altos tectos, donde caía uma fina poeira de trevas. O soalho, pintado de vermelho, frio e duro, gelava os pés; só havia diante das cadeiras pequenos tapetes gastos, duma pobreza tiritante nesse deserto, onde sopravam todos os ventos conhecidos e desconhecidos, pelas portas e janelas desconjuntadas.
Junto da salamandra meio ardente, na sala, montara, por mero mecanismo do hábito, a árvore de Natal, que, mesmo assim, não se conteve em decorar com o mesmo esmero de sempre. Aí se sentava, recostada no fundo da sua poltrona de veludo verde, vendo fumegar as achas miúdas de uma última mecha de madeira, com a sua alta estatura, o longo rosto grave cujos lábios finos nunca sorriam. Já se enviuvava por antecipação, deste coronel moribundo que nunca chegaria a ser general. Tinha ideias de dever, de honra, de patriotismo, que a tornavam inflexível, mirrada sob a rudeza da disciplina.
Raras vezes se lhe ouvia uma queixa. Vigiava o quase falecido, sem lhe tolerar um capricho, ou uma irregularidade, forçando-se a vela-lo, hirta e composta nas suas vestes de tempos idos, até ao bater da última badalada das doze, e depois, voltando aos comportamentos mais delicados que a compunham, moldava-se numa outra mulher, mais emotiva e humana, com a sensação do dever cumprido.
Nos seus longos silêncios, a senhora Mascarenhas, só tinha uma ideia em mente; uma ideia de um passado já quase tão distante quanto o amor que lhe dedicava: Fernando Pádua. O verdadeiro amor da sua vida.


No meio dum estrépito de glória, o conhecera, no saudoso ano de 1935, fizera dele o conciso objectivo de ser mulher, e sem grandes devaneios de pensar, a ele se entregara, inteira. Cada Natal fazia-lhe reviver essa vida que ficou por ser, até se tornar esta existência estreita de guarnição. Estes dias tristes, e sempre semelhantes, onde, aos poucos, se embrutecia.
Contudo, o passado tinha-a enchido de orgulho, e todos os anos, por breves instantes, julgava ver seu sonho realizado. Não o passado do regime militar que aceitara por imposição do casamento arranjado, que esse, lentamente, tornara-se gordo, afogado na própria carne, frouxo e covarde, mas um outro, aceso pelo desejo inacabado, que se mantinha em fogo constante na sua mente, e no seu corpo.
O vento engolfou-se na rua da fraga, uma bátega de chuva veio bater com fúria nos vidros. Levantara os olhos das cepas que se apagavam para ver se o Coronel já dormia.
Primeiro tinha-o detestado, ligando-se a uma necessidade teimosa de amor idílico, o ódio tenaz de uma rendilheira bonita, delicada, que não podendo ser de quem a amava, de um Pádua, louco de paixão, cometera a tolice de concordar com os pais, e desposar um capitão insípido que meramente a desejava, a comia ávido com os olhos, mas que não lhe tinha qualquer amor.
Depois, mortos os pais, a senhora Mascarenhas pusera-se a sonhar diante do infeliz capitão, já adoentado, e continuou a faze-lo até hoje.
Bateu com os dedos secos na mesa, e, sempre muda, chegou às cepas que ardiam, tentando reaviva-las, mas sem o conseguir.
No tempo de vida, o coronel moribundo, comera-lhe os pequenos rendimentos que lhes restavam, em paixões que ela não ousava aprofundar. Presentemente ainda, chegara à triste minúcia de lhe esvaziar a casa, para lhe suster os vícios de um desejo que já nem conseguia concretizar. Era a miséria quase completa; as salas nuas, a cozinha fria. Mas, nunca lhe falava destas coisas, porque no seu respeito pela disciplina, ele, continuava a ser o senhor.
Levantava-se para ir buscar à cozinha um sarmento, quando uma terrível borrasca, que caiu sobre a casa, sacudiu as portas, arrancou uma persiana, e inundou, com a água da caleira rota, as janelas. E no meio deste barulho, um toque de campainha surpreendeu-a. Quem poderia vir a esta hora, e com semelhante tempo?

(continua)

Comentários

  1. Anónimo10:07

    O texto possui erros de sintaxe e pelo menos um regionalismo, visto qe "sameiro" é um termo que não se encontra no dicionário de língua portuguesa. Ademais, parece-me demasiado colado à literatura sul-americana. Não vejo nada de novo neste texto.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado "anónimo", por esta sua perspectiva, aprecio-a, porque nem só de elogios vive o artista. Espero que continue a visitar este blogue, e quem sabe, a fazer descobertas de outros textos, que possa considerar mais inovadores.

    um abraço,
    Casimiro Teixeira

    ResponderEliminar
  3. Olá Miro,


    Eu gosto do teu texto...mas não encontro a palavra sameiro!!!:)

    Já estou embrenhada no teu Governo.

    Beijinho

    ResponderEliminar
  4. Obrigado, fico tão feliz por saber que alguém gostou, muito mesmo. Quanto ao "sameiro", vão-me desculpar, mas não sei onde foram buscar isso também. Essa palavra não consta do texto. Talvez se refiram a "sarmento" que quer dizer uma vara de vide, uma vara que cresce na videira todos os anos, e que a Sra. Mascarenhas foi buscar para lançar ao fogo mortiço. Só se for isso, será? - Bem, também não interessa, e o que estás a achar do "Governo Sombra"?

    beijinhos,
    Miro

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