Surpreende-me a minha própria nostalgia por tempos que nem conheci, e dos quais tenho apenas recordações transmitidas por terceiros. Nunca antes me colocara a viver nos anos da geração dos meus pais, mas de tempos a tempos, sou involuntariamente transportado para aí.
São somente breves instantes que se dilatam quando passo pela cozinha e o sol ilumina uma determinada cor das paredes. Caio numa fantasia em tons de azul pastel, de um tempo em que havia vacas leiteiras, muito pouca gente, e todas as pessoas se conheciam umas às outras, numa pequena aldeia isolada no cimo de um monte, sobranceira ao rio Ave. Havia ali uma quietude de ledo pasmo que muito me agradava. Velhas que raramente saíam de casa, e a quem eu fazia recados. Casas trancadas no tempo pela penúria ou pelo abandono, algumas mais antigas que as próprias velhas. Não existiam bulícios de inquietações, não se choravam misérias em privado, e em público não havia necessidade para tal, pois as desventuras eram de todos. Um cheiro de velhice em tudo, e eu ali no meio, a querer também parecer mais velho do que era de facto. Aquele bolor de uma idade que não sei definir, misturava-se nas gavetas, na despensa, nos soalhos, juntando-se com os aromas da madeira e do petróleo a queimar nas lamparinas.
Aquele cheiro traz-me a memória da minha tia morta, sentada muito direita, uma candeia iluminando-a à altura dos ombros, a mão flácida sobre o colo. Os seus joelhos sempre me intrigaram. Mesmo na morte os joelhos dela pareciam jovens, e senti que era errado que eles parecessem jovens. Sentia-me atraído pelos seus joelhos. Brutalmente atraído. A quase transparência que ganhavam na parte mais saliente, quando ela cruzava as pernas e as meias de seda cinzenta comprimiam a carne junto aos joelhos. Detestava, porém, os seus pés. Montinhos de carne que saíam, como erupções, dos sapatos apertados. Dizia ela que era um inchaço causado pelo tempo húmido, mas eu bem via que o que ela queria era ficar com os pés mais pequeninos e que, por isso, os apertava nos sapatos.
Foi esta contradição entre os seus pés e os seus joelhos que me levava a ver contradições mais vastas em mim mesmo. Eu nem era pertença daquele tempo, mas pertencia ao rumo definido que ele me conduzia. E não será somente isso que todos buscamos? Um rumo certo.
Deito-me todas as noites extenuado, e nem tenho tempo para ouvir as vozes do passado, e assim existem noites em que consigo esquecer que a minha tia está morta, e começo por vezes a imaginar que ela está bem, pois já não penso nos seus joelhos ou nos seus pés, ou em como estas imagens me explicaram o sentido da minha vida. Vivo simplesmente o dia-a-dia, cheio de actividades e depois durmo e volto a levantar-me, e se me perguntar ao espelho como está a minha tia, fico aborrecido com a pergunta, considerando o assunto demasiado remoto para lhe prestar atenção.
Por vezes, todavia, a luz movediça do sol, continua a pregar-me partidas, e retorno satisfeito a estes tempos onde me sinto feliz.
Boa prosa. Boa narrativa...
ResponderEliminarExplicar o inexplicável? Impossível. Apenas escrever sobre essa impossibilidade.
Bjo :)
Obrigado Odete, suponho que ainda terei de comer muita sopa para chegar a esse patamar, mas agradeço-te imenso por essas palavras. Um beijinho.
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