Avançar para o conteúdo principal

O milagre dos bois

- O expresso da meia-noite só passa às duas da matina, de modo que, se quiser descansar um pouco, pode faze-lo aqui, no depósito das encomendas e deitar-se no estrado, sobre os sacos de farinha. Não há que ter receio, que é farinha moída da colheita deste ano e ainda não tem bolores nem carunchos.
Como vê, a estação é pobre e sem movimento; construiu-a a companhia para servir o desvio e contam-se pelos dedos de uma mão os casebres perdidos nestas colinas. Aqui não há mais nada. Batem nove da noite e já desapareceram todas as luzes, a não ser as lanternas verdes e vermelhas no alto dos sinaleiros da linha. De um lado e de outro, os trilhos perdem-se no escuro, nos charcos, por debaixo do pontilhão. Só se escuta o sonolento coaxar das rãs.
Mas não se sente no banco da plataforma que o vento está puxado a frio, e nas cinco horas que tem pela frente decerto que apanhará qualquer coisa ruim nas canalizações interiores. Não se espante. Esse longo e doloroso lamento que lhe está a mexer com os nervos, vem do gado, mais além, no desvio, a meio quilómetro daqui. Já estou tão habituado a ele que nem o escuto direito, mas no começo...
Nos primeiros tempos deste degredo eu também senti a mesma coisa. A primeira noite foi danada! Dizem que esta zona não progride por causa dos gemidos dos bois engaiolados. E depois este cheiro de estrume, de amoníaco...não sente?
Quando faz calor parece que até as moscas fogem daqui. Vejo que o senhor aceitou o meu conselho e vai acomodar-se o melhor possível. Fume um cigarro que eu acendo um também. Tem fogo? Esqueci-me dos fósforos na mesa lá dentro. Obrigado.
Neste purgatório que chamam de apeadeiro, só aparece um passageiro de mês a mês, às vezes mais até. De modo que, quando encontro alguém, como o senhor, aproveito para colocar a conversa em dia e sentir-me gente outra vez, como os demais. Olhe, agora que estamos sentados um defronte ao outro, neste canto agasalhado pelo cereal moído, vou contar-lhe a história de um santo. É para matar o tempo apenas, compreende?
Sim senhor, a história do santo. Passou-se aqui mesmo, há por aí uns dois anos, se tanto. Ah, vejo que o senhor se interessa pelo caso. Pois então escute com atenção.

Certa altura surgiu por aqui, vindo nem sei bem de onde, um homenzarrão ruivo e de braços tão longos que lhe davam pelo coto dos joelhos. A mim pareceu-me alguém fugido de alguma prisão, ou que tivesse vivido à laia de um bicho por esse mato adentro, pois parecia ter-se esquecido da linguagem dos homens. Claro que me chamou logo à atenção, a mim, e aos vaqueiros lá mais adiante, os guardadores do gado. Chiça, aquilo era homem para chamar a atenção a qualquer um que se atravessasse na sua passagem. 
Passou por aqui como se nada fosse, nem uma palavra, nem um simples olhar de soslaio. Pensei estar a ver um urso a passar à minha frente em vez de um homem. Vi-o desaparecer num sumiço para os lados do desvio, e mal se foi atribui tudo a uma partida da vista. O senhor não conhece ainda o desvio? Tem de conhecer.
Para nós aquilo já pouco significado tem, é coisa de todo o dia. A vizinhança até endurece o coração, até os filhos do vaqueiros já se criam de maus instintos por causa do desvio. Imagine o senhor que os bois destinados à capital por exemplo e outras cidades mais distantes ainda, vem todos aqui parar. Enfiados em vagões estreitos, as gaiolas, viajam atravessados e unidos uns com os outros, de maneira que, muitos deles, os mais corpulentos, ficam arrepiados num arco gizado à coluna o dia todo, a viagem toda. Segue-se que a viagem é mais longa do que a linha estreita deste país, interrompida a cada passo. O desvio é apenas um ponto de pernoita.
O comboio chega ao escurecer e é manobrado para o desvio, até ao dia seguinte. Ao cabo desse tempo todo, das marchas e contra-marchas, dos choques, do cansaço, ou quiçá de pura fraqueza, sim senhor, de fraqueza, que a bicharada também a sente, a fraqueza não é coisa nossa apenas, não senhor..
Os tristes ficam tombados nas gaiolas, ferindo-se até uns aos outros. de chifres partidos e olhos vazados, há até aqueles que descalçam as unhas e se firmam no chão com as pontas de ossos sangrentos, de pernas esmigalhadas...não se admire, é mesmo assim. Lembre-se que durante todo o percurso, não se dá pinga de água ou migalha de comida a estas reses, e que, nos dias de grande calor, o ambiente lá dentro daquelas gaiolas é suficiente para cozer um folar. Não imagino outro exemplo de maior suplício, salvo o do nosso senhor Cristo.
Bem sei, bem sei...acalme-se já lá vou, esta história tem de ser bem contada para ser tomada como tal. O homem santo, sim senhor, então não me esqueci dele, nem pensar.
Não foram estes meus olhos propriamente quem o viram, pois que aqui estava na demanda do meu lavor, arduamente como sempre...mas contaram-me depois os vaqueiros, que esse mesmo homem ruivo, passando pela banda do desvio pela altura em que o comboio do gado lá pernoitava, e compreendendo o queixume que vai no mugido lancinante dos bois, deteve a sua marcha e não teve outro modo senão o de tentar amainar o seu sofrimento.
Munido de um velho balde, pôs-se a conduzir água do riacho até aqueles beiços sedentos que até já espumavam de dor. Saltitava de um em um sussurrando-lhes coisas aos ouvidos que a bicharada parecia entender. Em seguida fez-lhes chegar erva cegada e demais silvagem do mato que fez conta de ser forragem, e durante horas assim andou nestes prantos, perante os olhares perplexos dos vaqueiros e maquinistas, e logo ali cessou o lamento das reses, até chegar a altura do comboio partir. Pois...bem vejo no seu olhar a questão mais simples desta história toda; Santo? Assim é, meu caro senhor, porque aquela aventesma arruivada não arredou mais pé daquele sítio. Deixou-se estar pelo desvio, dormia ao pé de uma fogueira e vivia não sei bem como. É verdade, que fui lá eu ver com os meus olhos, e ele lá estava. Os maquinistas davam-lhe o resto das marmitas, e os vaqueiros apiedando-se dele, partilhavam o que podiam. Eu próprio assim o fiz também. Ficamos todos habituados àquele homem, era o santo protector dos bois, e cada nova leva de gado que parasse no desvio, granjeava do mesmo tratamento.
Mas, no ano passado, ao abrir a época da caça, desembarcou ali, no outeiro ao lado do desvio, um grupo de caçadores da cidade grande. Armaram tendas e ali passaram a noite. Houve bailarico ao som de sanfonas e gaitas-de-beiços, houve sim senhor, que eu ouvia daqui. Fala-se até que apareceram mulheres. E fizeram do ruivo o bombo da festa. Por suas tolices, pela tolice da sua devoção aos animais. Deu motivo a tornar-se numa autêntica farsa.
Um dos caçadores disse:
"Se fizeres tudo o que eu te mandar fazer, ponho já um criado a tratar de cada um dos bois. Olha que eu posso, sou dono deste comboio."
Mas o ruivo topou-lhes a fruição de cães ordinários. Ele era simples, simples como uma criança de colo, mas não era estúpido.
Eles gritavam-lhe:
"Ruivo, anda ao pé coxinho"
O gigante punha-se a andar como um bugio.
"Ruivo, atira-te ao riacho!"
Lá mergulhava ele no lodo.
"Ruivo, bebe este copo de bagaço de um trago só."
E ele emborcava até rolar sem sentidos pelo chão.
Passou-se assim a noite, e no dia seguinte, aquela tropa fandanga, deu alguns tiros desavisados pela mata e regressou à cidade com os cús encolhidos e as cinteiras carregadas de passarada aqui da zona.
Depois que estes partiram, o ruivo sentou-se num seixo ao lado do riacho e esperou com seriedade pelo cumprimento daquela promessa que lhe haviam feito na noite anterior. Assim esperou muito tempo. Os comboios continuavam a virem e a irem, e ele esperava somente. Um dia acharam-no morto. Os vaqueiros fizeram um buraco a alguns braçados do desvio e aí o enterraram.
Agora corre a ideia de que ele era um santo. Sabe porquê? Venha até aqui à porta e olhe lá longe, no fundo da noite. Está a ver aquela luzinha perdida ali em cima? É a fogueira do Ruivo. Ele, bem certo que desapareceu faz muito, mas a luz que deixou cá com a gente ainda não se apagou. Até já se contam milagres e tudo...Tolices dos vaqueiros.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

Três!

  Fui e sempre serei um ' geek '! - Cresci com o universo marvel nas revistas que lia em um quase arrebatamento do espírito em crescimento. O mesmo aconteceu-me com " Star Wars" , e com praticamente todos os bons  franchises que me animassem a vontade.  Quando este universo em particular, ( marvel ), surgiu finalmente em forma de cinema, exultei-me, obviamente. Mais ainda quando tudo se foi compondo em uma determinação de lhe incutir um percurso coordenado e sensato. Aquilo que ficou conhecido como MCU (Marvel Cinematic Universe). A interacção pareceu-me perfeita. Eles faziam os filmes e eu deliciava-me com os mesmos. Isto decorreu pelo que foi denominado por fases. As 4 primeiras atingiram-me os nervos certos e agarraram-me de tal maneira que mormente uma falha aqui ou ali, não me predispus a matar o amor que lhes tive. Foi uma espécie de idílio, até a DISNEY flectir os músculos financeiros que arrebanhou sabe-se lá como, e começar a comprar tudo o que faz um '