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A dúvida.

É bem possível que eu não consiga começar a trabalhar, e provavelmente o melhor é não pensar nisso e aproveitar o que tenho. Quando for necessário trabalharei. Nada me poderá impedir de o fazer. O último livro é bom e o próximo tem de ser melhor. Estes disparates que fazemos são tão engraçados, embora não tenha já bem a noção, onde acabam os disparates e começam as coisas sérias. Não é bom sinal. Durmo calmamente e vocês também, presumo. Não foi preciso vender nada para ter o dinheiro. Tudo o que me disseram sobre o dinheiro é verdade, de facto tudo é verdade. - "Durante algum tempo tudo estará contra ti." - Foi o que me disseram. E é verdade.
E o que foi que me disseram sobre o esquecimento absoluto? - Escapou-se-me, já não me recordo. Tudo a seu tempo preciso, terá um significado definido, e o dinheiro é apenas uma bruma dispersa num dia de Outono, o vento e o Sol tratam de o dissipar. Terá sido isto?
-"Não podes escrever contra o dinheiro e esperares depois que ele te apareça à frente." - Parece-me mais definido. Há um sentido lógico nesta afirmação. Falho de graciosidade poética, mas coerente. Preciso eu de dinheiro?
- "Que estás para aí a dizer? Não precisas de dinheiro? Vives do que o ar te traz. Tolo! Para que escreves tu então? Se aguardas por qualquer tipo de reconhecimento precisas do dinheiro para isso."
Que dor estranha ao ouvi-lo. Quase como se a minha vida dependesse da mestria de a bem vender. É nisto que me quero tornar?
- "Escreves para quê, então?"
Sei lá eu bem. Só tenho uma certeza que me anima. Se não o fizer não vejo forma de permanecer vivo. Como se cada palavra fosse um lufar de ânimo, um sopro de oxigénio essencial. Que se lixe o dinheiro.
-" Podes não morrer por falta de ar, mas morrerás na mesma." - Afirmou-me numa frase homicida.
Morremos todos, somos a face do heroísmo exacerbado ao cúmulo da lógica por determos esse ínfimo reconhecimento de espécie: Sabemos estar condenamos à morte, mas avançamos ainda assim.
-"Assim é. Mas progredimos porquê?"
Precisarei explicar-to? Somos homens, todos maiores do que nós mesmos. Somos arte e indústria, somos tudo. Que outra razão nos impulsionará ao progresso? O dinheiro não será de certeza!
-" Precisas de vender como precisas de criar. O homem não se fez homem por acreditar no altruísmo do que faz. Lembra-te, aí nesse fundo amalgamado de cultura judaico-cristã; Jesus expulsou os vendilhões do templo, porque estes denegriam a pureza da fé. Desapareceram os vendilhões ou a fé? Pensa nisso. Lembra-te."
Cansei-me de tentar lembra-lo. Olhei para o amor, beijei-o na face, levemente e ele não acordou. Amava-o muito e adormeci a pensar na sua face contra os meus lábios, e em como estaríamos ambos queimados pelo sol no dia seguinte. Um sol tímido de um Outono desabrigado de si mesmo. Como se a estação não se soubesse própria, e insistisse em ser outra. Adormeci assim, e o melhor é mesmo nem pensar nisso. 
-"Durante quanto tempo aguentarás sem que ninguém conheça o teu trabalho?" 
Não sei! - Respondi-lhe. - Mas é fim de tarde, e o automóvel desce pela estrada asfaltada, com o oceano azul profundo à direita e uma avenida deserta que dava para uma praia de areia amarela com mais de um quilómetro de comprimento. Não sei, mas hoje acredito ainda nos corações ansiosos das pessoas, e amanhã talvez descubram o meu livro, e poderei então começar o seguinte. Sou mais homem por acreditar nisto, menos serei por esperar o reconhecimento e o dinheiro. Eles me julgarão.

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