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Dez!


Sentia-se com um domínio completo da sua vontade quando se sentou a pensar na sua ausência. – Quinze dias é muito tempo! – Depois, pensou que tinha esse tempo só para si. Estava calmo, mas com a alma alimentada pelas pílulas da excitação. A erosão da sua partida era muito mais libertadora do que ele supunha. Precisava de a remeter ao papel para a sentir fora de si, era este o seu processo de purga, a sua forma de tornar real o que desejava. 
 Lançou-se então à tarefa de arrolar tudo aquilo que a sua presença nunca lhe permitiria fazer: Dormir nu, comer fritos, ver televisão até de madrugada, deixar o gato dormir na cama, masturbar-se, - o ímpeto deste desejo conduzia-o na obsessão de o fazer até em casas de banho públicas. – Sonhar acordado, sem que a sua expressão de pasmo lhe fizesse levantar a voz em mais um apupo. Sair com os amigos, jogar consola, ler um livro sozinho, escrever. Sim, escrever. Dez coisas, dez! Poderiam ser tantas mais, mas estas bastavam-lhe por agora para se sentir homem.
Escrever! – Quem me dera ter momentos desses. Divagar livre com a caneta por uma folha de papel e criar o meu próprio mundo, insuspeito e soberbo por ser meu apenas. Mas tens sempre de interferir, roubar-me os meus sonhos, tens sempre essa força imparável que não se detêm perante os meus desejos, que me subjuga e me traz de volta há terra num correr de um suspiro. Tomara eu ter dois minutos para me sentar à mesa e escrever um pensamento meu, só meu. Um pensamento onde tu não existas, onde não interfiras.
Começou a transpirar, viu-se paralisado dentro de uma rede de escuridão que o apertava, mais e mais, cada vez com mais força. – Acende a luz, meu idiota! Acende a luz!
Dez coisas tão simples que o casamento lhe roubara, pondo-lhes um fim prematuro e insatisfatório. Agora ela viajara para o Brasil, duas semanas longe dela, livre! – Bendita conferência.
O que é a liberdade? Pode dizer-se que é um comportamento que deve sugerir que tudo é possível, mesmo que essa eventualidade não possa ser dada como certa. – Que se dane, vou fazê-lo. Não estás aqui para me reprimir, para me devassar o tempo que dizes ser desperdiçado.
Sentia um desejo incontrolável de oferecer a alma ao papel, de entrega-la a essa ressaca.
Pegou numa folha, na sua melhor esferográfica e fê-lo. Pensou nas outras coisas que também poderia ter feito, mas esta era especial, esta merecia bem o tempo despendido.
Primeira linha:
Estou farto de me sentir prisioneiro. Vou deixar-te...

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