Avançar para o conteúdo principal

A luz


Numa certa idade os escritores transformam-se em conselheiros. É inútil que protestem essa condição, se o fizerem serão acusados de deslealdade. Uns tentam salvar-se com o que escrevem, outros, corrompem-se com o primeiro dinheiro ganho, depois, com a descoberta de que não conseguem escrever, mas de que não sabem fazer outra coisa diferente.
Assim era Emílio Sobral Alvarenga, autor  singular de um único opúsculo mal vendido, que durante o limite máximo de três meses, colocou o nome Alvarenga na boca de certos círculos corrompidos por um mau dizer ergonómico que lhes desfigurava o sentido de ser.
Tentava agora, depois de dias e noites a fio, deslindar outra narrativa que o guindasse novamente até essa fama efémera que conhecera, mas era inútil, a sua cabeça era um poço profundo de escuridão. 
Começou a compreender que pensar, embora curativo, não lhe construía nenhuma história cativante, e a conclusão seguinte foi a de que o pensar que não nos leva a lado nenhum, leva-nos a todo o lado.
Dessa feita, abandonou o Porto e foi procurar um outro espaço físico que lhe cativasse melhor a alma, um sítio de perfeição. Regressou ao berço natal, onde o mar é sereno e pensativo, e as gaivotas tão mansas que nos vêm comer à mão.
Mal chegou, tornou-se de imediato mais um desconhecido na cidade dos desconhecidos ilustres, e até onde a vista lhe alcançava, não havia vivalma que lhe apontasse o nome de família ou fizesse menção ao seu passado. Logo ali, um bulício efervescente de ideias novas lhe surgiu. Renascia a cada novo passo que dava pelas ruas da sua amada cidade de nascença.
Limpo, incógnito e só, sentara-se nessa tarde, num banco de madeira debaixo das folhagens amarelas do parque solitário. Estava aí havia mais de uma hora pensando no seu futuro, quando começou a primavera. Um vento de desordem espantou-lhe as ideias, saqueou as últimas folhas mortas e flanqueou o topo das árvores com uma luz brilhante. Um foco tão belo, tão etéreo e divino que seria quase impossível de ser descrito em palavras.
Fascinou-o o fulgor daquela luminosidade espontânea, tanto assim, que logo de seguida, se sentiu transferido de retorno até à sua infância. Aquela luz, num lugar destes, só poderia ser explicada pelos olhos de uma criança. A explosão de adjectivos que se formavam instantâneos na sua cabeça, assim lhe confirmava essa certeza. Seria essa vitalidade que faria com que Emílio não mais parecesse um escritor conservado em formol, modorrento de frases feitas e verbos condicionais. Começou a chuviscar naquela praça, e saiu disparado para lado algum. Ao desembocar na rua central teve um estremecimento. A luz seguia-o, não se perdia nas altas montanhas de betão e ferro que fechavam o horizonte, seguia-o por onde ele fosse. Assim era então. O lugar perfeito para viver esteve sempre dentro de si.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci

António Ramos Rosa, in "O Grito Claro" (1958)

A ilusão de morrer.

Aqui estou no pouco esplendor que expresso. A tornar-me mais e mais fraco à medida que envelheço e perco a parca noção de humanidade que um dia posso ter tido. Só antecipo resultados finais de má sorte. Dor, doenças malignas de inescrutáveis resultados, possibilidades de incontáveis suicídios sem paixão, paragens cardíacas no galgar das escadarias de S. Francisco. Atropelamentos fatais nas intersecções de estradas mal frequentadas. Facadas insuspeitas pelas noites simples de uma pacata Vila do Conde. Ontem quis ir à médica de família, talvez me pudesse passar algum veredicto. Não fui capaz. Não admito os médicos e as suas tretas 'new age'. Há menos de meio-século atrás, esta mesma inteira profissão fumava nos consultórios e pouco ou nada dizia sobre pulmões moribundos. A casa na praia valia mais que o prognóstico verdadeiro impedido. Aqui estou, contudo. Ainda aqui estou. Trapos e lixo vivem melhor as suas existências que eu. Escrevo isto, bebo, escrevo, mais três cigarros. Que