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A Amizade - Parte III

Até hoje pergunto a mim mesmo até que ponto aqueles dois sabiam que me estavam a dar um amuleto eterno, pois na realidade deveria ter-me desfeito dele nos meus anos vindouros de solidão entrincheirada. No entanto, ainda o conservo, poeirento e quase petrificado, porque desde que o carrego não voltou a faltar-me aquela mesma luz que descobri pela primeira vez naquele recreio.
A professora, tão severa na aula, era também diferente aí. No recreio ensinava-nos o que não dizia lá dentro da sala e aqui era onde dava livre curso ao que na realidade teria querido nos ensinar.


Até onde era possível na nossa idade, recordar que essa diferença se notava muito e nos ajudava mais, não sei, mas compreendíamos todos que a escola não era afinal aquele bicho-de-sete-cabeças com que a pintáramos. 
- Tens mais cara do segundo nome do que do primeiro. - Disse-me um deles, assim à laia de quem me pretendia batizar ali mesmo com as areias santas do recreio. - Ficas a chamar-te assim pode ser?
- Tinha de ser! - exclamou o outro. - O nome que os outros te deram já pouco importa, o que interessa agora é o nome pelo qual te conhecemos.
Perante o juízo incrédulo do meu olhar ainda acrescentou:
- Estou a falar do coração. - E a seguir virando-se para o outro concluiu. - Tenho razão ou não tenho?
Na luz coada do meio-dia fiquei alcunhado na redução intuitiva do nome com que me acolheram, e pouco me importaria o que me chamassem naquele momento. Um gesto de gato doméstico libertou-me de súbito da minha falta de conformidade, e antes que o dia terminasse já a coisa fluida da amizade se tinha instalado dentro mim, espremendo-me os meus cristais moídos, espalmando-os contra as paredes internas do meu crânio. Foi só precisa a força imparável do tempo para a acamar definitivamente no fulcro do meu íntimo. Não a deixaria mais entrar pelo ouvido e sair pela boca, por cada um dos poros ou pelos olhos que se desorbitavam à sua passagem.
Depois daquele dia, assim era a amizade para mim: interminável como o bater da cabeça de um menino contra um muro de cimento. Como todos os golpes duros dados contra as coisas firmes da natureza.
A amizade entranhou-se-me profunda, não quis saber de outras emoções por longos e longos anos, emoções que empalidecessem na sua comparação, mesmo estando certo de que me faria dano, de que por ela estaria impossibilitado de captar outras sensações, não queria.
Havia apenas um segundo, de acordo com o nosso mundo temporal, que se dera o acontecimento, mas nesse instante fiquei refém feliz desse universo físico que se movia fora do mundo que conhecera até então.
Como esquecer o primeiro pão com manteiga e leite com chocolate que se partilha com um amigo? Como pensar sequer serem ambos coisas de uma trivialidade infinita?
Claro que existem sombras de desastre até nos palcos mais luminosos, e este não era nenhuma exceção. Ao primeiro afastamento de dois passos, surgiu de imediato o monstro do ciúme a lançar dúvidas: 
- Se vieres amanhã bem cedo ficas sentado ao meu lado. - Sentenciou-me um face à distância momentânea do segundo. Logo ali percebi que a amizade não é pura como todas as emoções humanas não o são. - Como me poderia eu sentar ao seu lado em detrimento do outro, se ambos me ladeavam na disposição da sala de aulas? De que forma poderia eu preterir um em prol do outro, e porquê?
Os primeiros meninos daquele recreio que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava taciturno de mim, tiveram a ilusão de que era uma nuvem de mau agouro, de trovoadas inclementes. Não era. Era somente a estranheza do meu espírito que de mim se apossava novamente, envolvendo-me de uma lição que nunca mais esqueci. A amizade perdura-lhe, mas dói mais que o amor.
Resolvi a situação de uma penada só, prometendo a ambos sentar-me ao seu lado, e como assim já o era, nem me recriminei pela mentira. Na distribuição de prémios final, fomos os três aclamados como exemplos para a escola, e todos recebemos certificados de excelência. A parceria aparentava dar outros frutos que colhíamos com grande satisfação, e antes que déssemos por isso, já éramos finalistas da primária. Pela frente tínhamos uma nova vida para qual estávamos igualmente mal preparados para enfrentar, mas, desta vez tínhamos uns aos outros.

continua...

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