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A Amizade - Parte II

Não me ocorreu outra coisa senão sentar-me muito quieto como um tarrote assustado e esperar pelo primeiro contacto. A ideia de ser eu a inicia-lo não era muito tentadora. De súbito, eriçaram-se-me os pelos da nuca e senti os meus tímidos músculos a ficarem tensos como cabos de aço. Um daqueles dois rapazes, sustendo o fungo do seu próprio desânimo, atreveu-se a dirigir-me palavra. Coisa de pouca monta, fazendo justiça ao que bem sei ser o típico diálogo entre crianças, ainda assim as suas palavras mostrar-se-iam suficientes para me libertarem ondas insustentáveis de adrenalina pelo corpo fora. Não me tinha preparado para fazer amigos logo no primeiro dia de escola.


- Tenho-te visto aí pela rua! - Exclamou num só fôlego. - És filho da senhora que trabalha na Emissora não és?
Descobri que afinal não eram só as mães que se conheciam umas às outras, os filhos também. Supus então duas coisas muito diferentes: ou eu estava certo e não era mesmo uma pessoa normal, por não fazer a mais pálida ideia de quem ele seria e de que parte materna viria, ou aquele rapaz estava muito errado no seu rumo determinado de criança, por dedicar interesse a semelhante trivialidade.
- Sou. - Respondi-lhe assertivo, mas sem vontade de prolongar o assunto.
Os momentos seguintes foram decerto os mais terríveis. A vida é drama e até as mais nobres criaturas saboreiam por vezes o fel de um destino caprichoso e contumaz. Quando o vi fazer sinal ao outro para que se juntasse a nós, senti que tudo em mim se tinha tornado em gelo e que não seria capaz de mexer um músculo somente, nem que a minha vida disso dependesse.
- É o filho da senhora da Emissora. - Transmitiu então ao outro. - Eu não te tinha dito?
Achei estranho que o emprego da minha mãe fosse razão sobeja para alguém se aproximar de mim naquele dia, ou em qualquer outro dia que surgisse. Imaginei que seria o trabalho do meu pai a fomentar as primeiras conversas. Afinal de contas, ser filho do meu pai, era motivo suficiente para destoar de imediato de todos os outros, e o resultado estava à vista. Entre dezenas de batas de um branco imaculado, a minha, de cor cinza escuro, era a única que gritava claramente: O teu pai é alfaiate!
Porém, e antes mesmo que a conversa ganhasse novos contornos, já éramos todos arrebanhados como bandos de tímidas ovelhas assustadas para o interior da escola. Encaminhados e divididos pelas diferentes salas e professoras. Calhou termos ficado juntos, os três. Podia muito bem o destino se ter colocado entre nós, e hoje quem sabe, não estaria a escrever esta história.
A memória dos tempos da escola, vale o que vale para cada um de nós, diferente de um para outro. Mas é uma recordação que todos temos de guardar, preciosa em detalhes específicos, embora comum na generalidade das emoções. O abrigo destas lembranças só pode ser invadido em conjunto, quando velhos amigos desses tempos se juntam, e peça a peça, cada um vai edificando a escola de que se lembra, até esta se tornar inteira e familiar para todos.
É evidente que o primeiro dia do primeiro ano escolar, todavia pareça amplamente do uso ou domínio de todos de forma igual, nunca o é. Alguns tremiam como varas verdes perante o ambiente austero da própria sala de aulas, ou seria do olhar sisudo do senhor presidente que gotejava severidade de todos os poros da parca moldura onde o enclausuraram? Não sei. A mim era a vastidão profunda do espaço que ocupava aquela lousa ominosa, de um negro assustador, encimada pelo Cristo prostrado na sua cruz, que me aumentava os fluidos corridos do medo, mas lá está, de normal tinha muito pouco que me caracterizasse.
Outros brincavam com as carteiras quase como se nunca antes tivessem visto uma simples mesa na vida. Houve também uns poucos que ficaram perplexos de olhar atento à mínima palavra proferida pela professora, e tudo mais de novidade que preenchesse aquele lugar que passaríamos todos a vulgarizar daí em diante. 
O giz, e a descoberta do exótico giz de cores variadas, o vetusto mapa da nossa pátria, com todos os rios salientes como veias, e a famigerada vareta da professora, ah sim, aquele temível espeto de cana lenhosa, pousado em descanso no tampo maciço da escrivaninha da professora, como que a dizer-nos a todos: comportem-se se sabeis o que é bom para a tosse.
Assim foi com certeza um dia cheio de coisas raras, pequenas algumas, como a simples poeira que o giz faz quando um apagador lhe limpa os trilhos pela planície negra do quadro, outras enormes, como as escolhas daqueles dois rapazes que, de todos ali dentro, me singularizaram a mim, o filho da senhora da Emissora para formarem a mais perene de todas as relações.

Continua...


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