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A amizade - Parte I

O meu primeiro passo na vida real foi a descoberta dos amigos. Dois amigos em concreto, pois aprecio a exatidão das contas redondas, e um só, não me bastaria na altura, basta-me agora porém.
O encontro com esses dois rapazes, foi o primeiro elemento moderador do meu precoce desvario. Agora sei que não eram tolices de criança o que lhes dizia, mas um embrião rudimentar da minha veia de narrador, de modo a tornar a realidade mais divertida e compreensível aos meus olhos.
Nunca tive grande mérito de me conseguir sobressair nas coisas que formam uma pessoa normal. Pessoa normal? Sempre fui tudo menos isso, e eles assim mo apontavam regularmente, naqueles preceitos cruéis que só uma criança sabe apontar a outra. Todavia, não me demoviam essas pontadas, do aconchego da amizade recém-descoberta que já desde essa altura, em que mal havia ainda largado os cueiros da infância se fincou firme no meu íntimo estranho, e a eles também não.


Tudo começou no primeiro dia de escola, momento terrível para qualquer criança. Comparo-o quase ao primeiro impacto de sair de casa para ir estudar para uma universidade. Eu, pelo menos, assim o senti, mas acredito que numa pessoa normal, possa não ser bem assim.
Fui conduzido pela mão firme da minha mãe até ao dealbar do portão da escola, uma daquelas relíquias de pedra e cal do antigo regime, com o poste para a bandeira escantilhado oblíquo sobre os meus olhos. Quase me escorregou a mão suada da sua ao ver a bandeira ali desfraldada na minha frente. Engoli em seco e pautei-me de imediato com um orgulho e respeito que desconhecia até então. Senti-me como se fosse entregue ao cumprimento de um serviço militar, e a minha mãe, qual sargento impiedoso, tratou logo de me colocar em sentido absoluto. Nada de choradeiras ou réplicas ranhosas de mimos, despediu-se apenas, largando-me a mão e empurrando-me com rigor no sentido da porta verde da entrada, que me soou quase blindada, tal era a grossura que a compunha. A angulosa silhueta daquelas paredes brancas, graníticas, sugeria-me mais uma fortaleza inexpugnável do que uma escola. - Como raio é que eu poderia ali sobreviver mais do que algumas horas? -
Só depois de me entregar à minha sorte, é que se virou para mim, e me lançou o sorriso mais acalentador que alguma vez lhe conheci. Sendo homem, poderá não ser fácil para mim, definir o que é ser mãe, mas sei-o com clareza desde esse momento. Ser mãe é aquele sorriso.
Ela era sábia, pois sabia bem ao que me entregava, e cedo descobri que todos os meus receios eram infundados. A seu lado, outras duas mães, entre tantas que conheci nesse dia, lançavam semelhantes sorrisos a dois rapazes latagões que se entreviam um ao outro de esguelha apertada.
Nesses dias a minha soalheira aldeia, Azurara, conservava ainda o aspecto de uma pequena povoação fundeada na margem esquerda do rio que a separava da florescente metrópole, Vila do Conde, e presumi por isso, que todas as mães se conheciam umas às outras, mas os filhos não. Essa descoberta viria logo a seguir.

Continua...

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