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Amigo.




No dia em que completou onze anos de idade, Lucas fugiu a  fechar-se no seu quarto, permitindo que a vontade de abandonar os pais e o irmão, juntos lá em baixo na sala,  em pose de cartão postal, defronte ao seu estranho bolo de aniversário, decorado ao jeito das atividades triviais  dos estrunfes, corresse solta no seu coração, e entregou-se à grata tarefa de contar mais uma vez os seus amigos, que guardava debaixo da cama.


Um a um, foi-os retirando com a minúcia e desvelo com que se trata um recém-nascido, tomando conta para que as lombadas não se abrissem por demasia ou que as capas se arranhassem no contato de um roçar mais atrevido. Contou 100,  todos eles empilhados na sua frente, erguidos à altura dos seus olhos, como uma torre de babel, onde a súmula de todo o saber do mundo se reunia, desde o volumoso atlas, de capa agreste, que lhe havia sido oferecido pelo avô, e que fazia de suporte à vaza, até ao diminuto: "grande livro das desculpas da treta" que  formava o pináculo da mesma, recolhido à socapa no ano anterior ao espólio de livros dos quais o irmão mais velho quase se desfez. 
Certo do regalo que aquela maravilha lhe preenchia, e confiante na sua fiabilidade arquitetónica, Lucas deixou-a assim, recolhendo-se ao seu habitual pouso de leitura. Atravessou a janela do quarto para o exterior, abriu o seu caminho sobejamente conhecido por entre a folhagem, e sentou-se descalço no aconchego da sua árvore de ler. Era aí que se sentia feliz, que viajava e descobria, conhecia o mundo e as coisas de espanto que o compõem, e apesar dos reparos contínuos que os pais lhe faziam, nunca estava sozinho nesses momentos, levava sempre um dos seus amigos consigo, pois a sua pequena alma de criança, pedia  sempre boa companhia para o bom sustento da amizade. Neste dia, e já que era o dia do seu aniversário, escolheu o seu favorito, um belo livro de capa vermelha em couro brilhante, muito gasto pelo tempo de outras leituras de outrora. Lucas chamava-lhe simplesmente, Amigo. 
As horas voaram, e a noite veio, e com o espírito já cheio de sonhos e saciado de aventuras, foi então ver o que faziam aqueles bonecos azuis por entre o glacé do seu bolo.

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