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Um Amor nascido à pressa.


Viajam ambos em sono profundo depois do tórrido momento do primeiro encontro, num comboio com destino a Paris. A Lua esmorecera e o dia acabava de nascer, a chuva ganhara de novo terreno ao nevoeiro e voltava a cair, Teresa rejuvenescia a cada momento no descanso da sua paz.
O destino final aproximava-se, a estação da Gare D'Austerliz, e como assim era, ao alterar o ritmo sincopado da sua marcha, os guinchos metálicos dos travões a serem acionados sobre os trilhos, acabaram por o despertar primeiro, impulsionando Luís no retorno ao seu lugar, junto de Teresa. Queria desesperadamente lá estar quando ela despertasse. Vagueara até à brisa rápida da noite para fumar, e adormecera aí, no chão da plataforma. 
Despertava agora ainda meio cambaleante, com uma baba de fuligem a escorrer-lhe queixo abaixo, sem bem ter a certeza se tudo havia sido um sonho ou não. Apertou firmemente o bolso do casaco, sentiu um objeto lá dentro, um tecido, uma peça de roupa? Teria coragem para a tirar do bolso e confirmar?
 - Bom dia. Dormiste bem? – Questionou-a numa voz meio apagada.
 - Como um anjo. – Respondeu-lhe Teresa. - Não dormia assim tão sossegada há anos. É por tua causa, só pode ser.
 - Ainda bem. - Anuiu ele com a cabeça. - Temos de nos preparar, estamos a chegar.
 - Ótimo. Já estou farta deste comboio. - As palavras dela, complementavam os seus pensamentos, e ele sorriu. - E tu, conseguiste dormir alguma coisa?
 - Não, nem por isso. Talvez um pouco, qualquer coisinha.
 - Porquê, a perna? – Inferiu ela tocando-lhe na coxa.
 - Não, não foi a perna desta vez..estava agitado, impaciente. É de estar aqui preso também. Felizmente que já não falta muito. - Parou por instantes, olhou ternamente para a rapariga, incerto da razão de lhe ter mentido, e então soltou a pergunta que já há muito lhe tamborilava o espírito. - Teresa, fiquei a pensar naquilo que me disseste, e não me sai uma coisa da cabeça! Uma única questão fundamental que tenho de te colocar. Porquê que afirmas que és a mulher da minha vida? Não é normal isso que dizes. Ainda há pouco nos conhecemos?
 - De onde foi que isso veio agora? – Replicou ela franzindo o sobrolho carregado. - Porque sim, porque sim! – Exclamou depois, convicta. - Nunca tive tanta a certeza de uma coisa, como tenho disso.
 - Mas porquê? Já pensaste na grandeza dessas palavras?
 - Sei lá porquê..porque me pareceu a coisa mais natural para te dizer na altura. Oh, desculpa!
 - Na altura, e agora não?
 - Querido, o que se passa? Julguei que estava tudo bem connosco. São palavras apenas, o que interessa no fundo é o que elas nos fazem sentir. Este nosso amor fresquinho é o que importa, não achas?
 - Até pode ser que sim. Mas, não consigo tirar isso da cabeça. É tão repentino e tão definitivo ao mesmo tempo. É verdade que queres mesmo ficar comigo para sempre? - Tropeçou ao dizer as últimas palavras, e depois viu o absurdo de lhe ocultar aquilo que estava certo de que ela já saberia. Avançou, destemido, disposto a ser completamente sincero. - Eu já fui casado sabes? - Baixou os olhos de vergonha, e corou ao dizer-lhe isto, como se tivesse dito que tinha lepra, ou peste bubónica. – Aliás..
 - Sei. – Interrompeu-o. - Isso também..
 - E..Sabes que ainda o sou? – A surpresa desta revelação toldou-lhe o rosto.
 - Mesmo assim, quero. Sou tua agora, toda tua. - Passou-lhe com a mão pelo cabelo, num gesto completamente maternal e terno.
Aquela palavra, tua, não lhe pareceu mais do que a leveza de uma pluma que lhe roçava pelo lábio, da delicadeza de uma folha que cai no ar parado; uma leve impressão apenas, tão leve que Luís quase a sentia na ponta dos dedos. Mas tão exaltante, crescendo de tal maneira no seu espírito, tornando-se tão insistente que se tornou real para ele. Aquela palavra limpava-lhe os pecados, dava-lhe liberdade para ser dela também, e para acreditar nisso.
 - Eu acredito. Mas seria bom que isto pudesse durar não achas?
Teresa, apanhada de surpresa pelas suas palavras, acobertou-se no silêncio, certa de que qualquer resposta que lhe pudesse dar lhes iria arruinar o momento. A ânsia todavia, voltava a crescer dentro dele, era um vírus incurável, e não fizera a pergunta por acaso. Esperava dela qualquer reação, menos o silêncio. E ao aperceber-se disto, a rapariga decidiu responder-lhe:
 - E porque não haveria de durar? Temos uma vida inteira pela frente.
 - E o Domingos? O que significa para ti? Ama-lo?
Logo entendeu que a sua resposta não havia sido satisfatória, e decidiu complementá-la:
 - Em tempos sim. Mas agora amo-te a ti, tu és o homem da minha vida, e o amor dura para sempre.  – Ainda não parecia ser o suficiente.
Luís assentiu com a cabeça, mas a sua expressão trazia um sarcasmo seco estampado. 
 - Se dura para sempre, então, ainda o deves amar, visto que dizes tê-lo amado em tempos. - Insistiu ele batendo na ferida aberta.
 - Sim..não, não amo. Ele fez-me muito mal e agora temo-o, mais do que outra coisa.  - Amo-te a ti. Sou tua, tua. A sério, e para sempre.
Ele adiantou um passo na sua direção, pensou em selar o assunto com um beijo, e abraçá-la até não poder mais, era o que gostaria de fazer, mas não o conseguiu. Ardia-lhe um fogo eterno na alma, que lhe queimava a vontade de dar largas aos prazeres mais simples.
 - Mas porquê que não disseste isso na sua frente, quando estávamos os três no restaurante? Gostava que ele tivesse ouvido isso da tua boca. Quando eu estava lá, quando estávamos lá os três. Seria a maior prova que me poderias dar. Agora, e para sempre. Assim, assim já não sei o que pensar..
 - Precisavas mesmo dessa confirmação? Dessa prova, como lhe chamas? - Virou-se de costas para ele, não queria olhá-lo de frente nessa altura específica.
 - Como de respirar, Teresa, como do ar que respiro agora.
- Dá-me um cigarro. - Pediu-lhe, ainda de costas voltadas para si.
 - Tu não fumas. – Argumentou Luís.
 - Hoje fumo. Se tu fumas, eu fumo.
 - Não! – Luís cambaleou um pouco e acabou por se sentar novamente, com o casaco já vestido e o saco no colo.
 - O que foi? Deixa-me ver a tua perna. – Insistia ela com a minúcia de uma mãe.
 - Não, deixa estar, não é a perna. Não é o raio da perna. Estou um bocado fraco, não como nada há quase três dias. E depois, não é só isso também, são outras coisas. – Ela sabia o quê.
 - Olha, fazemos assim, o comboio está quase na estação. Não me parece ser a melhor altura para termos uma conversa que vai ser interrompida a meio.
 - Estás a arranjar uma desculpa para não me responderes. Também, não importa. Prefiro acreditar no que me dizes, do que acreditar que seja verdade. É mais cómodo para mim fazê-lo.
 - Não, não estou. Feres-me ao dizeres isso. Quero falar contigo. Aliás fazia intenção de o fazer, mas não aqui, não agora, estou farta de estar na merda deste comboio. Saímos, vamos comer algo e conversamos. Temos muito que falar.
 - Às vezes sinto-me como se estivesse a viver num daqueles filmes antigos, onde o destino dos personagens já está selado e não há nada a fazer, exceto prosseguir com a história. Estou demasiado cansado para grandes conversas. – Suspirou Luís.
Teresa fitou-o, bem do fundo daqueles olhos verdes, um olhar de compaixão e amor, e isto foi o suficiente para o convencer.
A Gare D'Austerliz pulsava de vida, quando o comboio aí chegou. O casal apeou-se e dirigiu-se para um agradável café, ainda dentro da estação que ficava num terraço sobranceiro à rua.
O menu estava impresso nas costas de um cartão postal retratando a estação nos seus tempos áureos, e Teresa guardou-o no bolso depois de escolher o que queria. Luís estava hermético na sua concha de silêncio, agarrado a um grande naco de baguette com queijo, que devorou num instante.
Ela apenas ia debicando lentamente a sua, como um pardal que encontrara um sumptuoso manjar. Calmamente foi contornando o formato da baguette, até chegar ao queijo que comeu de uma vez só.
 - És engraçada a comer. - Disse ele, rindo-se da sua figura. Foi o seu primeiro riso solto desde há muito.
 - Eu gosto das coisas à minha maneira. Gosto deste pão, mas prefiro o queijo. Como-o primeiro e depois como o pão.
 - É suposto comerem-se os dois juntamente.
Teresa sentiu que tudo aquilo não fora suficiente para lhe afastar da ideia a vontade de tocarem novamente naquele assunto. Aquele assunto. Qual seria? Depressa compreendeu que teria de pôr tudo cá fora de uma vez por todas, ou nunca se livraria daquilo. Ele adivinhou-lhe o pensamento pelas rugas na sua cabeça, e debruçando-se sobre a mesa, tirou-lhe a baguette das mãos, agarrou-lhe o rosto e beijou-a longamente.
- Esquece tudo o que te disse! Tu és a mulher da minha vida.





Casimiro Teixeira
2001

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