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O saco de lona.

Recordo-me claramente de um princípio de tarde como este, tinha doze anos e no céu corriam cabritinhos de nuvens carregados em solavancos imperceptíveis por uma brisa suave. O meu tio tinha uma alfaiataria inclinada de esguelha na encosta do mosteiro, e nessa tarde eu estava lá ao seu lado, enquanto ele fumava estirado no seu cadeirão vermelho de napa, que rangia um gemido estridente a cada movimento. Notava-se que a consciência lhe falhava empurrando-o para a sesta, ainda assim mantinha-se atento de um olho ao que eu fazia.
Debatia-me com o atilho embirrento de um nó cego daquele saco de lona que me oferecera antes com promessas afãs de tesouros indescritíveis no seu interior, caso eu o conseguisse abrir, e sentia-lhe aquele olho posto em mim, atento, cioso do resultado final da minha curiosidade. 
Eu porém, ávido pelo conteúdo de mistério daquele saco, mais o atava do que propriamente o contrário e a demanda de alguns segundos, arrastava-se já em vários minutos.

A sua voz, habitualmente matizada nos registos graves, parecia mais densa devido ao avolumar da tensão.
- Então, - disse-me ele. - Isso vai ou quê?
O brio dos meus agastados esforços ressentiram-se desse avanço de pressa, mas os dedos atrapalhavam-se a si mesmos numa tramóia conspiratória. Ufano de raiva, ergui os olhos até ele perguntando-lhe em silêncio qual a combinação daquela fechadura de ráfia, em troca recebi apenas um sorriso condescendente, reflectido até ao infinito no jogo de espelhos que moldavam a sua dianteira.
- Não tarda nada está aí o teu pai, e tu ainda nisso. - continuou dando uma longa baforada no cigarro.
A aspereza dura da lona, fazia troça do meu empenho, e ainda que podendo sentir as formas dos diferentes objetos que continha no seu interior, todo o meu zelo não fazia jus à façanha de lhe quebrar o fecho quase inviolável, mas o cuidado de criança na ânsia por coisas raras, é sempre tenaz quando a perspectiva do prémio é grande, de modo que não me convencia por nada a desistir de lhes chegar com o toque aflito das mãos. Virei-lhe costas para não lhe mostrar a minha angústia, mas continuava a sentir sobre o ombro, o seu olhar fugidio e líquido.
- Já estás outra vez a embrulhar as coisas. - A sua voz agora parecia denotar impaciência.
Aquele tesouro pertencia-me com a abrangência de todos os meus sentidos, e de forma alguma iria abrir mão dele, já sonhava de olhos abertos com as longas horas de brincadeiras que me proporcionaria, e não seria agora o raio de um nó que me impediria de o gozar.
O tamanho solene indicava uma pista, mas o tilintar apontava para o guizo de um mar de berlindes chocando uns com os outros. Bolas, podia até ser uma bicicleta, que sem conseguir assaltar aquela fortaleza de lona nunca o iria saber.
O meu tio remexia-se inquieto no cadeirão, ecoando um rangido constante pelo velho quarto das provas. A agonia da napa parecia indicar o fim próximo daquele momento, e o tempo não cedia uma nesga de oportunidades, como eu desejei que ele parasse.
- Deixa lá isso agora, o teu pai chegou. - Sentenciou-me o meu tio.
De facto assim era. O som voador das bisagras mal oleadas das duas portas de vidro da entrada, confirmava-lhe o sentido das palavras. O meu pai acabara de entrar, e com ele vinha o fim da minha aventura com a sacola de lona.
Claro que barafustei como um perdido quando ele me pegou na mão e me levou para longe da caverna espelhada dos segredos. Tudo inútil porém, faltou pouco até, para lhe sentir o peso da mão na minha cara, tal era o prejuízo barulhento dos meus protestos. Antes de sair, lancei um derradeiro vislumbre aquele saco ali pousado no chão, o meu rosto era uma montra desmazelada de desgosto, e as lágrimas desciam-me pela face, roliças como seixos. Inútil, que triste inutilidade de entusiasmo.
Só aquele piscar de olho final do meu tio, me conseguiu enxagua-las por instantes. Havia ali uma promessa de continuação, e resignei-me ao próximo capítulo da minha aventura com o saco de lona.
Ainda hoje estou para saber o que ele continha.

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