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Corre! - Uma novela


Humberto Crica vivia só, em Vila do Conde, num pequeno quarto obscuro, quase minimalista de coisas materiais, e alisado pela sevícia inclemente que caracteriza a vida de um homem que já passou a portada dos cinquenta sem nunca ter casado ou se amancebado no juntar de trapos com alguém.
O seu bastião de infinito retiro, encimava uma garagem de reparações automóveis e venda a retalho de peças, de modo que entrava e saía de casa todos os dias, com a pressa de evitar o cheiro embirrento do óleo de motor, e o sarro da graxa que avançava a olhos vistos, lançando acervo como um musgo de breu ao seu umbral de entrada.
Só quando se refugiava na escuridão suave do quarto despido é que se sentia por fim seguro, tratando de por outra vez no lugar, as manifestações desgarradas de terror que lhe percorriam o corpo ao longo do dia.
Empurrava um banco de alumínio para junto da única janela do compartimento, e aí renascia viçoso todos os dias. A entrada forçada da luz, assim acreditava, tinha o poder de o ferir na passagem morosa das horas, como se esta tivesse a intenção de o torturar com seus ferros luminosos atiçados na brasa inclemente do Sol, e para a evitar, mantinha a casa sempre protegida por escoras, assim com a portada de madeira constantemente cerrada, esperando esta, ansiosa, como se de um ser vivo se tratasse, pela acalmia do fim de tarde, e pela chegada do dono e senhor, vindo este a assumir aí o seu lugar, no parapeito da janela, lançando vislumbre ao côncavo da doca e à dança hipnotizante dos barcos ante o restolhar calmo da maré do rio e do voo espavorido das gaivotas.
Era esta a altura do presigo frugal da noite, o caldo quente, a sandes de queijo barato e fiambre falso, mais gordura que carne, mas também a da paz de espírito, a vez de Humberto ser pessoa novamente por alguns instantes, e parecer normal, o quase nada que ainda aparentava, aos olhos dos passantes lá em baixo na rua.
Hoje porém, não haviam ilusões de normalidade suficientes, ou consolo de pobre conduto que lhe sossegassem o corpo e a alma.
Nada mais havia que a planície árida da folha que lhe sopesava a mão, um mero conjunto de letras e números que agrupados num dizer de sentido, não tinham o poder de lhe adicionar nada mais às palavras já ditas num sussurro lento de anunciação de uma lotaria às avessas, pronunciadas nessa tarde pelo seu médico de família.
- Pouco mais há a fazer Sr. Humberto, os testes confirmam-no, é de facto maligno. – Afirmava este, estóico.
Assim, sem outro modo de aprouver a disposição de quem ouve, lhe foi oferecida a condição do seu fim.
- E quanto tempo ainda me resta senhor doutor? – Perguntava-lhe Humberto numa tibieza de modos contidos.
O médico, mais pela apatia do que lhe pareceu banal na pergunta, do que propriamente pela intenção da solenidade do momento, ajustou com minúcia a ponte torta dos óculos e soltou um bafo prolongado de esquivança pela boca que pedia muda o fim rápido desta conversa.
- Entre quinze a dezoito meses, é a melhor previsão que lhe posso fazer. – Suspirou este num só sopro.
E já está. Como um juiz que transmite uma sentença, os algarismos engordam-se em casas decimais para parecerem mais longos. 
(...) Continua... 

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