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Governo Sombra - Cap.IV


CAP. IV
Matosinhos, Julho de 2009
Marta Duarte

Marta Duarte trabalhava à quase sete anos numa sucursal de uma grande multinacional de fitness no Porto. A Hard Abs. Havia iniciado carreira ali como comercial, mas depressa subira por mérito próprio, e agora desempenhava a função de formadora comercial, distribuindo a sua experiência por outros potenciais futuros comerciais da empresa.

Nessa manhã, começara um curso de formação de oito horas, graciosamente denominado de Fénix, que se iria estender pelos próximos dois dias. Este curso, representava um plano já avançado da formação. Em paralelo, outras colegas ministravam outros cursos: - de Formação inicial de vendas, com uma carga horária substancialmente maior, mas também de refresh Sales, e ainda um outro denominado de Zen Comercial.
Tarimbada nesta tarefa, Marta sentiu-se no entanto apreensiva nessa manhã, como se pressentisse que alguma coisa iria correr mal.
Tudo começou ao descer o canal rodoviário paralelo ao metro de superfície em Matosinhos, já a caminho do trabalho, no Porto. Sentiu um calafrio insistente a descer-lhe espinha abaixo. Quase teve de parar o carro, para se certificar de que não era o seu cabelo a escorrer água. Arrancou de novo, apercebendo-se que o calafrio esvaíra-se em nada no fundo das suas costas, e acabou por olvidar a questão, atribuindo-o à aparição de uma misteriosa corrente de ar que de algum modo houvesse encontrado caminho carro dentro.
Já refeita, voltava agora a sua atenção para o seu casaco de tafetá novo, com o qual pretendia ofuscar os formandos. Este, trazia pelos de gato agarrados num pequeno feixe sobre o seu regaço. Varreu-os num ápice com a mão direita, fazendo-os saltar do seu colo. Foi o correr de um suspiro.
O baque foi súbito e insidioso. Sentiu-o longe, como se um anjo empoleirado no topo de um prédio estivesse a ver uma corrida de stock cars em câmera lenta, e pudesse vislumbrar todos os pequenos pedaços de vidro estilhaçado, todo o metal a retorcer-se, toda a gama de objetos e elementos a serem projetados frontalmente, ocultando o corpo de carne e osso que seguia em polme por entre este vendaval de matéria destruída.
Marta Duarte, acordou no Hospital Pedro Hispano, duas semanas depois. Ferida, moída, amassada em todos os escaninhos do seu ser, mas, viva.
Rodeava-a um ambiente estranho de tubos e máquinas, e não tinha mobilidade possível. O pescoço manietado por um colar cervical, os membros abraçados por gesso e ligaduras, assim como a sua cabeça. Uma múmia paralítica. Apenas o seu olho esquerdo escapara à depredação do lenimento e rodopiava nervoso pelo quarto salubre onde se encontrava.
Em cima de uma mesa jazia já mortiço um braçado de girassóis, as suas flores favoritas, que ataviavam uma jarra lilás, que ela reconheceu. Também ali estavam vários postais de “melhoras rápidas” postos ao alto sobre a mesa, sobressaiu um, com a imagem de um gato em ar de desespero, pendurado no ramo de uma árvore, que dizia: - “Hang in there” – Aguenta aí!
A imagem do gato, trouxe-lhe finalmente a memória do acidente, reminiscências de uma morte certa que não chegou a ser.
No dia seguinte, sexta-feira, foi operada, uma intervenção de cinco horas, que no imediato deixou as coisas tão sombrias como estavam. Em rigor, o único consolo que lhe restava era saber que estava viva.
Estranhou a ausência continuada de visitas. Onde estariam o seu companheiro, os amigos, os colegas de trabalho, o seu irmão e sobrinha? E quem lhe terá trazido os girassóis? – Foi ele de certeza. – Pensou. – Só ele é que sabe que eu os adoro.
Os dias passavam, volviam-se em semanas, e finalmente os ossos se foram remendando, as feridas sarando, porém, continuava sozinha na sua cama no hospital, ninguém parecia dar pela sua falta, ou querer entrar em contacto consigo. Tentando explicar a si própria a sua ansiedade, esmiuçou justificações esdrúxulas que nem a si mesma conseguiu vender.
- Sabe se alguém me veio visitar alguma vez? – Perguntou a uma enfermeira. – Enquanto eu dormia, talvez?
- Não, menina. Sempre que estive de serviço nesta ala nunca lhe vi ninguém por perto. Mas, se quiser posso perguntar às minhas colegas?
- Por favor. Faz isso por mim.
- Não custa nada. Depois digo-lhe qualquer coisa. De qualquer das maneiras, já não falta muito para nos deixar. Constou-me que o médico em breve lhe dará alta.
- Enfermeira!
- Sim, menina.
- E estas flores que aqui estavam quando cheguei. Quem foi que as trouxe?
- Flores?
- Sim. Estava aqui um ramo de girassóis numa jarra lilás, quando acordei pela primeira vez depois do acidente. Sabe quem foi que mo trouxe?
- Não tenho presente ter havido quaisquer flores que fossem aqui. Girassóis ou outras. Mas, mais uma vez pode ter sido no outro turno. Vou perguntar isso também, não se preocupe. Ponha-se boa, isso é que é importante.
- E os postais...que fizeram com os postais.. – Já era tarde. A enfermeira já havia saído. – Terei sonhado?
Retornaria a casa, antes do fim dessa mesma semana. Pouco mais de um mês depois do acidente. Não viu vivalma que reconhecesse durante todo esse período. Mal conseguiu empurrar a porta de casa para que esta se abrisse. Um amontoado de correspondência e folhetos publicitários faziam de cunha atrás dela.
A casa jazia em silêncio, apenas com um forte odor pungente a amoníaco a pairar no ar. Foi quando se lembrou dos gatos. – Ele deve ter cuidado deles. Pchss...pchss...pchss.. – Chamou ela inutilmente. – Meus amores onde estão vocês? – Nada! – As duas pequenas caixas de areia que faziam a parte de sanitário lá estavam, aqui e ali, lá pelo meio, alguns excrementos já ressequidos, mas gatos, nada!
Sentou-se pregada numa cadeira, imóvel, aniquilada, roída por um desespero transcendente. – Onde é que ele está? Onde estão todos? – Dirigiu-se a uma janela para confirmar que o mundo não havia terminado num holocausto nuclear no tempo em que estivera no hospital. – Que tolice! Está tudo no seu lugar.
Tentou aproveitar este sossego para por o conta quilômetros a zero, relativizar, repensar todo o percurso desde o final do mês anterior. Sentia-se esgotada, física e moralmente. A solidão forçada tem este efeito nas pessoas. Ou seriam ainda as mazelas do acidente?
Verificou a Internet para saber notícias. Acedeu à página do seu servidor de correio eletrônico, ao FaceBook. Tudo vazio. Nada. Spam, informações de outros utilizadores, lixo, balelas, inutilidades. Nada sobre si, ou que lhe dissesse respeito, direta ou indiretamente.
Parecia que no último mês a sua existência havia sido erradicada da face da Terra.
Agora o desespero lentamente transformava-se em terror.
Enquanto fazia esforços para comer, Marta assentia amavelmente com a cabeça, como se concordasse. Mantinha o rosto ainda mal suturado, rente ao écran do portátil, esperando que alguém lhe falasse. Mas nada. Sempre nada. Sentiu uma picada que originara do fundo do pescoço. Um ténue arranhão do acidente.
Marta Duarte não era todavia mulher para comer e ficar calada. Tinha uma determinação resoluta que todos sempre lhe haviam invejado. Pegou na muleta e foi descobrir por si própria.


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