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Governo Sombra - Cap.III


CAP. III
Vila do Conde, Abril de 2009
Pedro Gonçalves

A semana iniciara-se quente e afogueada. Nada que se parecesse com a canícula do Verão, mas ainda assim, dava a entender que alguém havia dado ordem de marcha à chuva, limpo a parada de nuvens maçadoras, e mandado o Sol brilhar à discrição. No início da tarde, Pedro Gonçalves afogava-se em suor no escaldante habitáculo do seu carro. A cabeça afundada no banco do condutor, rebatido ao máximo, tentando dormir uma sesta impossível, perante a inclemência daquele sol primaveril. Mesmo defronte, uma gaivota solitária, afagava a penugem despreocupadamente, pousada sobre um dos marcos de pedra que juncavam o corredor da margem à beira rio. Sentiu-se estranhamente afim com a ave, como se ambos partilhassem a inércia do correr dos dias, sem preocupações de maior, justo até ao momento em que esta partiu num voo alvoraçado, indo rasar uma mancha cintilante na água, entre a barra que separa o rio do mar. Decerto uma daquelas tainhas gordas que os pescadores de cana, levavam horas à espera para apanharem. A gaivota apanhou-a num segundo. Seria o seu próprio almoço, ou teria crias para alimentar à espera em algum lado?

Se assim fosse, até nisso a analogia era perfeita. Ainda não haviam passado vinte minutos, tinha ele também, dado o almoço aos seus filhos, deixando-os na escola e rumando para aquele sítio, para que o tempo aqui passasse mais devagar. Tornara-se já numa espécie de rotina, em parte, era o seu trabalho. Sentava-se ali, a ver o rio desaguar no mar, enquanto fumava, contemplava o futuro e sonhava com o passado. Ao final da tarde, teria de retornar ao emprego, apanhar as crianças no fim da escola, tratar-lhes do jantar, corrigir os deveres, correr-lhes os banhos, assegurar-se das suas horas de dormir.
Nunca havia conseguido entender o prazer que os pescadores tiravam em ficarem ali, largas horas, apanhando peixes que nem sequer podiam comer. A poluição daquele rio engordava-os é certo, mas também os tornava irremediavelmente intragáveis. Deixava a sua atenção escapar para outro lado, afinal de contas, pescar, como sonhar, era uma forma de passar o tempo como qualquer outra. Assim como assim, nem mesmo ele ousava sair da rotina que mantinha para si mesmo. Nunca encontrava energia para ultrapassar a barreira das práticas constantes na sua vida, nem conseguia arranjar forças para brincar com os filhos ou mostrar-lhes um sorriso de tempos a tempos. Encontrava-se preso ao quotidiano hermético que criara, e receava fugir de lá. Talvez tivesse sido uma gaivota em outra encarnação, quem sabe?
Desde este momento até às duas da tarde, quando havia prometido a si próprio retornar a casa e dar novo arremesso ao romance inacabado que escrevia nos últimos quatro anos, esgotara todas as formas persuasivas de não o fazer. Propôs-se por fim uma fórmula imbatível: - “Se voltar a escrever e conseguir acabar este, mesmo que não seja publicado, deixo de fumar, juro que o faço!” – Nunca conseguia. Depois apanhava-se a rir-se sozinho, pelo sentido desconexo das próprias parvoíces que dizia.
Tinha contornado tantos escolhos descabidos, tantas promessas aziagas, tantas bolas de fogo fátuo, que mais uma menos uma, já nem sequer lhe fariam grande diferença. O que não podia fazer, era continuar ali dentro. Já sentia o rosto enrubescido pelo calor intenso que fazia, mesmo estando com o vidro todo corrido para baixo. – Vou dar uma volta. Apanhar ar fresco. – Balbuciou entre dentes.
Não pode deixar de reparar novamente nos pescadores. – Cada vez são mais. – Pensou. – Mais um sinal destes tempos miseráveis. Só espero que nenhum deles esteja em tais dificuldades que contemple fazer dum destes peixes o jantar da família. – A ideia soou-lhe caricata. Imaginou até o cabeçalho da notícia: - “Uma família inteira em Vila do Conde, adoece gravemente devido a intoxicação alimentar, originada pela ingestão de peixes contaminados do Rio Ave. Questionado por este jornal, ainda acamado no Hospital, o pescador, Sr. Alberto Maravalhas, chefe da família, confessou estar desempregado à seis meses, e estando também a mulher em casa por motivo de doença crónica, ter chegado ao cúmulo de não ter mais nada para colocar na mesa de jantar nessa noite..” – Ou algo assim desse género, tinha de ser melhor trabalhado, mas daria uma excelente notícia para abrir os jornais da noite. Os telejornais digladiavam-se como gaivotas esfomeadas por noticias gordas como essas.
Decidiu pois inspeccionar, com a devida discrição os bornais dos pescadores ali perto, tentando assegurar-se de que nenhum continha quaisquer peixes, pois o mais comum eram estes serem de novo lançados à água depois de capturados. Claro que haviam aqueles, que os usavam depois de triturados, como ração para animais de quinta. Após esta constatação mental, abandonou de imediato a sua acção de vigilância, e prosseguiu a caminhada, na direcção da praia da Guia. – Que tolice a minha estar a imaginar estas coisas. Que me interessa o que eles fazem com os peixes? Ninguém me está a impingir nenhum. Estou me marimbando se eles os comem ou não. Rais’ partam os pescadores, as gaivotas e a merda dos telejornais.
Já entre a capela da Guia e o monumento ao famoso desembarque do Mindelo que trouxe D. Pedro de volta a Portugal, assistiu a uma mulher que carregava uma vasilha com pão seco de um restaurante ali perto, e o atirava para a areia da praia da guia, para o deleite de um bando imenso de frenéticas gaivotas que grasnavam em frenesi. Aproximou-se do monumento, uma espécie de monólito recortado que comemorava o famoso desembarque. Uma rápida vistoria no relógio de pulso, fez-lo aperceber-se de que tinha uma promessa a cumprir. Despediu-se do mar e das gaivotas e retornou ao carro.
Preparava-se para correr rapidamente para casa, quando reparou numa comoção junto ao degradado edifício que em tempos foi a sede da empresa que geria a  seca do bacalhau. Dirigiu-se aí, movido mais por uma vontade inabalável de adiar os seus planos para essa tarde do que propriamente por curiosidade. Uma pequena turba de gente acotovelava-se nas traseiras de um camião de caixa aberta, onde um homem entroncado de camisa branca desabotoada até à altura do peito, e cabelo lambido distribuía qualquer coisa, que Pedro não conseguiu bem discernir o quê.
- O que se passa aqui? – Perguntou ele a um homem de aspecto desesperado, que inutilmente tentava furar o muro impenetrável de costas movediças à sua frente.
- Este homem diz que tem emprego para 50 pessoas numa empresa na zona industrial. – Respondeu-lhe o indivíduo. – Os primeiros a receber os cupões que ele está a distribuir serão os primeiros a terem oportunidade de conseguirem lá trabalhar.
- Cupões para trabalhar? – Quis saber Pedro. – Mas para fazer o quê?
- Sabe-se lá. Ele não diz. Mas, o salário é de €800. Eu ganho metade disso pelo subsídio, se não for nada de muito duro, vale a pena não acha?
- Oitocentos Euros? Isso é mais do que eu ganhava na PASCAL. - Claro que vale a pena.
Não ia ser desta que deixaria de fumar. Incitado pela promessa de um salário chorudo também se juntou à multidão, tentando furar e empurrar como todos os outros. Em paralelo a isto, vários pequenos grupos de transeuntes juntavam-se na periferia da bagunça, observando apenas, numa calma displicente. Entre estes encontrava-se Jorge Campos, um antigo colega de Pedro, dos tempos da fábrica do leite.
- Pedro! – Gritou-lhe, tentando chamar-lhe a atenção. – Hei Pedro, aqui! – Afastando-se do seu grupo, embrenhou-se  a golpes de cotovelo no sarrabulho de gente que empurrava na direção do camião. Agarrou Pedro pelo braço, e sem que este desse por tal, conseguiu arrastá-lo dali para fora, sem apelo nem agravo.
- Jó! – Exclamou Pedro genuinamente surpreendido.
- Salvei-te a vida rapaz. – Argumentou o amigo. – Acredita-me, tu não te queres envolver com esta gente.
- Não quero? O que eu quero é um emprego, por que dizes que não quero?
- Isto é um esquema Pedro, eu sei. Tenho um primo que conseguiu escapar a tempo de um “emprego” parecido.
- Escapou..dás a entender que quase fugiu de Custóias. O quê que tu sabes sobre isto? Já viste ao ponto a que chegamos? Lutarmos por cupões como cães por um osso.
- Bolas! – Exclamou o amigo. -  Ouve menino.. – Fez uma breve pausa arranjando a ponte dos óculos sobre o nariz, que por acaso até já estava direita. - ..Tinha-te como mais esperto do que isto. Então tu nem sabes do que se trata e metes-te ali no meio como um urso cego, sedento por mel? Isto é coisa de trafulhas, empresas de trabalho temporário, que te levam sabe-se lá para onde, põem-te a trabalhar como um mouro, 10, 12 horas por dia, sem fins-de-semana, sem férias, sem vida própria. E com um pouco de sorte, no fim, se calhar até nem te pagam. Salvei-te a vida ouviste?
-  Mas eles pagam €800, Oitocentos ouviste bem?
- Nem que te pagassem €1000 ou €5000 que fosse. Não vale o esforço da tua saúde, menino! Anda daí, eu pago-te um copo e abro-te esses olhos.
-  Não posso, tenho mesmo de ir para casa, tenho que fazer.
- Anda daí. O que são alguns minutos perdidos, quando passados entre amigos? Não percebo o que te terá passado pela cabeça, para te ires meter nesta embrulhada, não tinhas já um bom emprego?
- Pois, sabes como é. As coisas não me correram assim lá muito bem..
- O que foi, a empresa deu o badagaio? Faliu? Vê-se muito disso agora..
- Não, não foi nada disso. – Interrompeu-o bruscamente.
- Então rapaz, Desabafa! Estás tenso como um fio elétrico. Despediram-te foi? Não há vergonha nenhuma em admiti-lo. Eu próprio já passei por isso. Ah, já percebi...deu-te o fanico na cabeça e deste à sola, não foi?
- Escuta, gostei de te ver, mas tenho mesmo de ir. – Despachava-o Pedro.
- Relaxa. Sempre o mesmo apressadinho de sempre. Já não tens tempo para beber uma cerveja com um amigo?
-  Isto para mim é um pouco complicado agora.
-  O quê, beberes um copo comigo é complicado?
- Não me sinto muito confortável, estou à demasiado tempo desempregado. Preciso fazer algo com a minha vida. Tenho dois filhos sabes?
Pedro sentia-se inquieto. Adivinhara o malogro, sentiu que tinha sido apanhado em falso, mas a promessa de receber um salário novamente, clamara-o mais alto.
- Sabes o que eu te digo! – Afirmava, fazendo uma nova correção inútil no alinhamento dos óculos. - O que este país precisa é de outra revolução! – Exclamou com fervor. – Não como a de Abril de 74, mas, uma a sério. Há primeira pinta de sangue nas ruas, aqueles gândulos lá em Lisboa correriam num ápice para debaixo das saias das mães, tu verias. Grande patifes, garotos..
Pedro sorria-lhe, incrédulo das suas palavras incendiárias.
- Eu digo-te o que devíamos fazer? – Continuava o homem. - Assaltar a Assembléia à força, sequestrar o “chefe” e aquela pandilha de criminosos todos, e não os deixar sair dali até reverterem esta situação, e mudarem as leis dos últimos cinqüenta anos, que só roubam o nosso dinheiro, para darem aos banqueiros e capitalistas. Explodir com tudo se for esse o caso.
- Não te sabia Anarquista, Jó?
- Anarquista, eu? Chamas-me anarquista a mim? Quem pensas que nos colocou nesta fossa asséptica onde estamos? A crise..bah! A crise não existe meu amigo. Foram esses facínoras dos especuladores capitalistas que fizeram fortunas, que nos chutaram para a crise, e quando o ciclo estourou, o que foi que eles fizeram?
- Não sei, Jó. O que foi que eles fizeram? – Respondia-lhe num tom paternalista.
- Aborreço-te é?  Vais ver quando eles gritarem austeridade com ares de boi manso, quem se aborrece. Vais ver Pedro. Podes não ter um emprego agora, mas, tens um teto em cima da cabeça, comida na mesa, carro, e vida descansada, mas, e os teus filhos? Como será com os teus filhos?
- Senhor-sabe-tudo..És vidente então agora. Tens alguma bola de cristal que vê o futuro? Surpreendes-me Jó, nunca te conheci assim. Essas reuniões do partido têm te enchido a cabeça. Mas sabes, podes estar mais perto da verdade do que tu pensas. Quem sabe o que o desespero nos obriga a fazer. Eu próprio já nem sei a quantas ando. Preciso de um propósito, entendes? O trabalho de um homem, é mais do que uma fonte de rendimento, ás vezes é também aquilo que o define.
- É o que está à vista de todos Pedro. E já diz o ditado que: “o pior cego é o que não quer ver”. Somos todos nós Pedro. Estamos todos cegos, eles cegaram-nos, e com as próprias ferramentas rombas que nós pagamos. Eu digo: Revolução, já!
- Acalma-te vá. Ainda te prendem por andares a gritar assim no meio da rua. – Brincava Pedro.
- Acertaste em cheio. As pessoas pensam que este é um país de brandos costumes, mas estão enganadas.
-  O que me estás a dizer? Foste preso por causa disso?
O amigo acenava que sim com a cabeça.
-  Duas vezes já. E acredita-me que estes tipos não são nada meigos. Estás a ver estas marcas aqui? – Mostrava-lhe Jorge, levantando a camisa e pondo em evidência dois grandes hematomas na bacia. – E este pequeno aqui, na base da cabeça? Quando levas com ele, parece que não dói, mas as marcas ficam. O objetivo é muito claro. Não levantes ondas, cala-te, senão..
-  Mas quem, onde te fizeram isso?
- Aqui mesmo, em Vila do Conde. Ninguém sabe quem eles são. Não são polícias, nem sequer te mostram identificação. Quando aparecem, sabem tudo sobre ti. O que disseste, quando e a quem. Ficas de boca fechada quando te levam, porque sabes que fizeste alguma coisa de mal, não sabes é o quê. Quando começam a bater-te, já não consegues ficar calado.
- Não posso crer. Mas, aqui, em Vila do Conde?
- Por todo o país meu amigo. Portugal já não é livre novamente. Quando o sangue destes lobos em pele de cordeiro, começar a correr nas ruas, então eles vão ser obrigados a reconhecerem os seus erros. Alguém vai ter de mostrar a verdade. Viste o que aconteceu na Grécia? Foi por um triz. Isto vai acontecer Pedro, marca as minhas palavras. Isto vai acontecer. Eu, eu não tenho filhos, nem sou casado sequer. Não tenho pais vivos, não tenho família. Bem sei que é fácil para mim falar deste modo, mas se pensares bem, Eu, sou dos que têm menos a perder. E tu meu amigo, o que vais tu fazer?
Pedro pouco mais fez do que olhar para ele, boquiaberto

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