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Governo Sombra - Cap.II


CAP. II
Lisboa, Agosto de 2008
Henrique Lobo

Henrique Lobo revolvia-se com nervosismo, sentado com evidente desconforto num canapé de palhinha, de cor pastel do séc. XIX, na austera sala de audiências do palácio de S. Bento. Tinha as costas voltadas ao centro da sala, que estava ornada com uma bela lareira ao fundo, quatro grandes janelas com sanefas em tule adamascado, e cadeirões de aspecto bem mais confortável do que aquele onde decidira sentar-se. Agora, porém, era tarde. Tinha tomado a inglória decisão de esperar ali, ou quiçá melhor, tinham-na tomado por si.
Sabia claramente que o “chefe”, estava no edifício naquele instante. Haviam-no informado de tal. – Sua Excelência está a terminar uns assuntos na sala do conselho de ministros, e já o atenderá – Assim lhe foi dito. E conduziram-no até essa divisão para que aí o aguardasse.
Nunca ali havia estado antes. Desde Março de 2005, quando o governo havia tomado posse, e ele próprio, Henrique Lobo, endossado com o cargo excelso, quer dizer inútil, de secretário de estado, pelo Presidente, nunca havia entrado na residência do Primeiro-Ministro.
Deixou a mente divagar pelas reentrâncias da história daquele local. Sempre havia sido um aficionado pela história, mas pela história dos tempos turbulentos da ditadura do estado novo em particular. Aliás, era essa mesma a sua formação. Licenciatura em História Moderna e Contemporânea. O Pai ainda assim repreendera-o por essa opção académica – O que raio vais tu fazer com esse canudo? – Dizia-lhe. – Por que não foste para Direito como eu fui, e o meu pai antes de mim, e o teu irmão, já agora? Inútil! – Se ao menos ele me pudesse ver agora. – Pensou Henrique. – Secretário de Estado, sentado no Palácio de S. Bento, em vias de discutir assuntos importantes da Nação com o “chefe” em pessoa. – Continuo sendo um inútil, mas, estás feliz agora, pai?
Desde o início do governo do Estado Novo, dos dezasseis chefes de Estado que haviam tomado posse, em dezoito governos, apenas sete deles tinham decidido aí residir, no edifício que faz gaveto entre a Calçada da Estrela e a Rua da Imprensa à Estrela. Salazar havia sido o primeiro em 1938, depois de extensas obras de reparação e adaptação, o “chefe”, seria o sétimo na lista, até há data.
Fez recurso da sua memória histórica para nomear os restantes cinco: Vasco Gonçalves, José Pinheiro de Azevedo, Sal Mota Pinto, Aníbal Cavaco Silva e Pedro Santana Lopes. Tentou encontrar algum fio condutor que os unisse a todos, para explicar o porquê destes terem decidido assim, e os outros não. Qualquer característica individual que os distinguissem dos outros. Desistiu a meio, pois por muito que forçasse a cabeça, não lhes denotava nenhuma particularidade que explicasse tal decisão. Todavia, sentia-se ainda assim contente, por ter ocupado o seu tempo com semelhante lucubração.
Sempre fora um homem reservado, em alguns aspectos, transpirando até um certo ar sombrio, vivendo no passado. Tinha assimilado a convicção de que aquela lenta procissão da sua vida, por um mundo de quietude, miséria emocional e rancores velados, era tão natural como a água mineral que bebia naquele momento. E, se ali estava agora, naquele lugar naquele instante, nunca o teria sido, senão pela intromissão da sua tia Bibi. A Viscondessa Beatriz Filipa de Vasconcelos, irmã direita de seu Pai, e casada em quintas núpcias com o Comendador Manuel Godinho, um rico industrial de têxteis de Guimarães, um homem rude e austero, considerado por muitos, como uma das actuais figuras de proa do partido, aquelas que urdem os destinos deste país num confortável segundo plano.
Para começar, fora órfão de mãe, e os cuidados que o pai havia tido consigo, foram aumentados por uma dupla noção de responsabilidade. O pai nunca falava dela, e esquivava-se discretamente sempre que Henrique o questionava sobre o assunto. Muito cedo compreendeu que para ele, era muito doloroso falar sobre aquilo, e não foi senão a intervenção da tia, que o permitiu crescer normalmente como se num lar comum o fizesse. Entre casamentos, esta fazia o papel grato de mãe adoptiva daqueles dois rapazes, sobretudo dele, que pouca ou nenhuma mãe verdadeira haviam conhecido.
Anos depois, quando a sua condição de órfão se tornou definitiva, aquando da morte inexplicada do seu pai, Henrique Lobo, ganhara muito mais do que uma nova mãe, ganhara uma amiga para a vida.
Nunca se perdoou a si próprio porém, por ter deixado o pai morrer sem lhe mostrar o quanto lhe estava agradecido por tudo. Certa noite, ainda rapaz, foi conduzido para longe da sua casa pela tia Bibi. Tudo o que conseguiu ver ao passar pelo quarto do pai, foi um revólver em cima da cama, e a sombra do seu irmão mais velho pendendo sobre esta. Desse momento em diante, passou a viver com a tia, e nunca mais voltou a ver a sua família; o irmão e o pai. A tia dissera-lhe que o pai se suicidara, o que o chocou, e que o irmão, já formado na altura, havia abalado para o estrangeiro com o desgosto. Ficara com a ideia terrível de que o irmão matara o próprio pai, e o pior ainda, foi que, quando confrontada com a sua teoria, a tia, nunca lha havia negado. Uma parte dele morrera também naquela noite, mas aprendera a viver novamente graças à incessante dedicação e amor da tia.
No entanto, a constante interferência desta na construção do seu carácter, acabaria por força-lo a tomar decisões de vida que não lhe agradavam de todo. Tudo o que Henrique Lobo desejava, era ser um professor universitário de História, mas, através da forte influência do seu actual padrasto, Manuel Godinho, sem dúvida que movido pela insistência da sua esposa, a tia Bibi, conseguira chegar à bem remunerada, e altamente prestigiada posição de secretário de estado. Tê-lo-ia feito Ministro da mesma pasta, não fosse a infeliz ocorrência de o cargo já ter sido cobiçado por um parente em segundo grau do “chefe” em pessoa. De acordo com a versão da tia, ainda mal curada pelo espanto da decepção, o actual detentor do cargo ministerial, não passava de um banana sem espinha dorsal, catedrático de uma qualquer disciplina da qual nem se atrevia a lembrar, totalmente irrelevante à pasta que herdara de mão beijada, e que assentia docilmente com um sorriso amarelo, à mais suave insinuação do Primeiro-Ministro, como se de um macaco amestrado se tratasse. – Devias ter sido tu Rique, - solfejava-lhe a tia ao ouvido com a sua voz canora. – Devias ter sido tu!
Henrique assentia-lhe que sim com a cabeça, mais por vontade de lhe fazer o gosto, do que pelo próprio desejo de que assim o fosse. Tudo o que ele queria afinal, era dar aulas de História num enorme auditório universitário. Que percebia ele de política actual?
Enquanto ajeitava pela décima vez o duplo nó windsor da sua gravata, foi finalmente chamado à presença do “chefe”, na sala do conselho de ministros.
Arrastou-se com sofreguidão pelo corredor fora, com o céu da boca encrostado por uma secura inusitada. – Devia ter bebido o resto da água. – Pensou de si para si.
Ao chegar mais perto, reparou que a porta se encontrava entreaberta, e mesmo antes de lhe tocar, pode ver por entre a fresta escancarada, o riste de um par de pernas bem torneadas que assentavam sobre o tampo da enorme secretária daquela sala. Esta fazia o desenho de um U que houvesse sido trancado na parte aberta, completando assim um O meio quebrantado. E era em torno dela que os ministros se sentavam. No topo desta, grosso modo na parte semi-redonda do U, ficava a cadeira do Primeiro-Ministro, que presidia às reuniões, adornado na sua imponência, por uma estranha pintura surrealista nas suas costas, e por um singelo estandarte com a bandeira nacional. Era aí precisamente, que a estranha figura se encontrava sentada.
-  Posso Sr. Primeiro-Ministro? – Inquiriu Henrique, batendo ao de leve na porta com os cotos de dois dedos.
-  Sim, entre por favor Sr. Lobo. – Respondeu-lhe em vez dele uma voz feminina. – Espero que não nos demoremos muito, tenho outra reunião já a seguir.
-  Mas, eu pensei que...
-  Esperava encontrar-se com o PM? É isso? Lamento desaponta-lo mas acontece que ele era esperado com urgência num evento, e teve de delegar-me esta reunião. Não é um problema para si, espero?
-  Não..quer dizer, não sei. Tinha instruções para reportar direct...
- Aproxime-se sem medo Sr. Lobo. Não o vou comer. – Cortou-lhe novamente o discurso, a bem vestida e vistosa jovem, sem arredar pé da sua posição, a mesma que Henrique vislumbrara pela frincha da porta.
Enquanto contornava a secretária na sua direcção, evitando com a mão as costas das cadeiras no seu trajecto, os seus olhos iam fazendo um exame minucioso àquele corpo bem tonificado, desde a ponta dos seus saltos altos apontados em riste sobre a secretária, por todos os contornos do seu fato de duas peças cor de vinho, até terminar num rosto angelical, com um olhar perfurante que também o mirava de cima a baixo ao dirigir-se para si.
-  Muito prazer. Chamo-me Henrique Lobo, mas vejo que isso já o sabe, Dona..?
- Guerra. Menina..Mariana Guerra. Não me chame Dona por favor que detesto. Traz a documentação?
-  Sim, pois sim, claro. Aqui estão os resultados dos nossos exames. – Anuiu Henrique retirando uma pilha de papéis de uma pasta. – Passei eu próprio tudo a limpo, e juntei-lhe por baixo o meu próprio parecer. Creio que os vai achar interessantes, mas...
- Diga Sr. Lobo, o que o apoquenta agora? – Questionou-o a rapariga passando os seus brilhantes olhos azuis pelo conteúdo do relatório que Henrique lhe passara para as mãos. Não me diga que ficou melindrado por não ter sido recebido pelo nosso PM?
- Não! Claro que não. Ou melhor..sim. Até fiquei um pouco, estive quase uma hora naquela sala esperando-o e agora ele não me recebe? Creio ter sido ele quem pediu explicitamente que eu viesse aqui hoje apresentar este caso. Bem sei que não sou ninguém relevante, mas ainda assim, acho um pouco indelicado da parte dele não me ter recebido pessoalmente. E..e além do mais, sou recebido por você. – Enrugou a testa num ar de espanto duvidoso. - Quem é a menina? Qual é a sua função no governo, para o Sr. Primeiro – Ministro lhe ter entregue esta tarefa?
- Calma. Acalme-se Sr. Lobo. Não há razão para ficar nervoso ou duvidoso. De facto foi o “chefe” que o chamou pessoalmente, mas convenhamos que, trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. Antes de mais, pode começar por desgrudar os olhos das minhas pernas, que já começa a deixar marcas de baba, - rematou-lhe com acinte a mulher, erguendo-se finalmente em pé, e passando a mão pela saia encorrilhada, ao mesmo tempo que o trespassava com um olhar gélido. – a seguir, Sr. Lobo, quem eu sou verdadeiramente, ou o cargo que ocupo, é algo que está em segredo de estado, sendo do conhecimento apenas daqueles que precisem de o conhecer, e o senhor, não é um deles. E por fim, aquilo que nos traz aqui hoje, a mim e a si, é de uma importância crucial para o destino do nosso pais, daí a incumbência  que me foi passada pelo PM. Dúvidas?
Ainda que subjugado por anseios, Henrique tratou imediatamente de colocar o seu natural espírito inquisidor em prática.
- Descreve um belo círculo perfeito, mas, como em todos os círculos, retorna ao ponto de origem. A minha pergunta permanece por responder. Quem é você afinal? Assistente executiva? Relações Públicas?
A mulher olhou para ele, confusa por alguns instantes. Incapaz de perceber se o tinha mal avaliado, ou se ele apenas estaria a fazer um número de duro, que de algum modo não lhe parecia encaixar muito bem. Mas, tinha treino suficiente para desmantelar qualquer tentativa de a confundir ou qualquer ataque verbal que lhe lançassem.
- Como lhe disse. A situação é grave e necessita de acção imediata, porém, o seu habitual excelente desempenho nestas questões, irá ser determinante nestes próximos dias para a sua resolução.
Sabia bem, que a melhor arma a utilizar numa situação destas, é sempre o elogio fácil. Ao enaltecer o seu interlocutor, atribuindo-lhe uma importância que ele não detêm, face a uma ocorrência que ele desconhece, acaba sempre por ser mais do que suficiente para que este baixe a guarda e anua à sua retórica circular.
- Menina Guerra, asseguro-lhe de que não faço a mais ténue ideia do que me está a falar, e devo adverti-la de que toda esta situação de capa e espada não me está a agradar mesmo nada. Vim cá para falar com o Sr. Primeiro-Ministro, segundo instruções que ele próprio passou ao Sr. Ministro, que por sua vez mas transmitiu. Estou cá portanto em funções oficiais do governo, percebe? Agradecia-lhe que não me fizesse perder mais tempo, e me devolvesse esse dossier que se destina aos olhos do Sr. Primeiro-Ministro e a ele apenas. É que sabe, esse seu jogo sinistro, pode ser jogado a dois. – indicou Henrique curvando as suas sobrancelhas num S deitado - Não sei o que faz a menina aqui, e muito francamente nem me interessa. Contudo, não recebi instruções para discutir estes assuntos com mais ninguém senão ele. Agora, se não se importa.. – estendeu-lhe a mão aberta. – Os papéis por favor!
A jovem mulher levantou os olhos da resma que tinha nas mãos e lançou-lhe um sorriso descontraído, simpático, esquisito naquele rosto glacial com que o havia recebido ainda há pouco.
- Sabe Sr. Lobo, instantaneamente dei-me conta de duas coisas. Duas coisas que até me gelaram a espinha enquanto o ouvia falar mesmo agora. Primeiro, de que o Ministro Correia Félix tinha razão em nos indicar o seu nome para esta missão, eu própria critiquei a sua decisão na frente do PM, sobretudo depois de ler o seu magro dossier pessoal. Achei que ele deveria estar no gozo, por nos indicar uma pessoa assim, para uma tarefa tão delicada como esta, mas dou a mão à palmatória. O homem é bom avaliador de carácter, por baixo desse ar de sonso, você tem fogo nas veias e parece cem por cento dedicado à causa. Há nossa causa. É a nossa causa, não é Sr. Lobo?
- Causa? Qual Causa? Já lhe disse que não entendo patavina do que a Dona..perdão, menina Guerra fala. Vai me dar os papéis agora por favor?
- Espere, não quer saber qual é a segunda?
- Segunda o quê?
- Disse-lhe que me apercebi de duas coisas sobre si mesmo agora. Já lhe descrevi a primeira, a segunda é talvez a mais importante das duas. E essa confesso, que apesar de já ter conhecimento dela depois de ter lido o seu processo, só agora me apercebi da sua relevância.
-  Ah sim, e qual é? Já agora, satisfaço a minha curiosidade.
- A sua paternidade Sr. Lobo, o facto de o senhor ser fruto de tal cepa. É extraordinário, mas possível. Há um potencial em si que só agora se tornou visível para mim. O seu Pai, Sr. Lobo, estou a falar do seu Pai.

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