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Governo Sombra - Cap.I


CAP. I
Vila do Conde, Janeiro de 2009
Pedro Gonçalves

Surpreendido pela sua própria nostalgia por tempos dos quais nem retinha memórias pessoais, Pedro Gonçalves, deixou-se encovar no deformado puff castanho de bolinhas de esferovite, arrumado num canto acolhedor da sala, e sonhou acordado com a geração dos seus pais, tempos de escassas recordações, constantemente marginalizadas nas conversas à mesa, os anos quarenta e cinquenta, onde a pobreza, embora dura e lategada, parecia menos agreste do que agora.

Por vezes, em breves instantes que se dilatavam em minutos, o pai e a tia, divagavam soltos por esses tempos, mas, o rosto carregado de sua mãe, sempre os demovia de continuarem imparáveis no desfiar de tais memórias incómodas. Não havia porém, esse travão agora. A morte de sua mãe, quatro anos já corridos, deixara-os quiçá livres, para soltarem a língua nessas memórias encerradas. Todavia, já não o faziam. Poder-se-ia dizer que na altura o fariam por vontade de tagarela, ou também, de que não o fazem agora, por respeito à memoria da falecida. Pedro, porém, gostava de acreditar, que nos tempos de agora, a recordação desses anos, seria sempre alegre, por comparação, daí o silêncio.
Caído numa fantasia em tons de branco e carmesim, com o copo de whisky meio cheio na mão, Pedro, iluminava no seu imaginário a real miséria pela qual a sua mãe haveria de ter passado, bastando-lhe apenas saber que nesta cidade de agora, uma vila na altura, passou mesmo pela indignidade de ter fome, e nada para comer.
O dia estava no fim. Teria passado estas notas pessoais para o computador, não fosse o torpor do álcool levar-lhe a melhor e empurra-lo para um sono forçado que queria vir, mas que custava a assentar. Em vez disso, desligou as luzes da sala, fechou a porta do corredor, separando o seu espaço sacrossanto do da sua família que dormia em sossego nos quartos além.
Carregava em si uma apatia desmesurada, que lentamente se transformara numa moição descontrolada, e por fim, com a ajuda da bebida caminhava a passos largos para uma absoluta depressão.
Há já algum tempo que a andava a pisar, e agora, estava a um passo de escorregar para um lado obscuro – ou pelo menos, mais sombrio.
Nessa noite não pregou olho, o que não era costume seu. Trazia o coração nas mangas, e sentia como se a justiça dormisse consigo todas as noites. Mas, agora parecia-lhe diferente, o sono dos justos polvilhava-se de constantes despertares, fruto de pesadelos bem reais. A seu ver, o anjo da morte fazia-lhe visitas nocturnas quotidianas. Flutuava por instantes na penumbra fresca da sala e voltava a sair pela janela. Sabia-o ali presente todas as noites, e consignando esse facto optou por dormir no sofá da sala a partir daí, quase que como numa posição protectora da sua mulher e dois filhos, que dormiam no outro lado da porta trancada do corredor. Sentia-se melhor assim. A razão por que gostamos de pensar tão bem dos outros é o medo que sentimos de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror.
E o que mais o aterrorizava não era a morte, mas a perda. Estava desempregado à dezasseis meses, e a destituição de rendimentos, assustava-o muito mais do que a generosidade da morte.
Pensamos nós que somos generosos, por creditarmos ao próximo as virtudes que provavelmente são um benefício para nós.
Para Pedro, o seu maior medo era de que algum dos seus pensamentos se transformasse em realidade. Quer dizer, não tanto o pensamento em si, mas a coisa pensada. Por exemplo, poderia pensar que num determinado momento, lhe sairia o euromilhões e que todos os seus problemas estariam resolvidos, mas, também haviam aquelas coisas bem pensadas que o conduziam à morte. Uma noite a mulher chegaria a casa, e colado na porta da casa de banho estaria um bilhete escrito, dizendo: - Não deixes os miúdos entrarem aqui agora, não quero que me vejam assim. Amo-te para sempre, mas, acho que sabes que é melhor para todos que eu acabe assim os meus dias. Adeus” – Ou qualquer coisa similar. A sua intenção é a de dizer tudo antes do fim, mas acaba por fazer um resumo patético da situação. É muito mais limpo e cru, mas também o é mais sincero. Sempre sentiu um certo desprezo pelo optimismo. E quanto à vida perdida, nenhuma vida se perde, senão aquela cujo crescimento se trava.
Tinha de tentar preencher esses vazios, de arranjar emprego, ou não. De viver uma vida plena, ou deixar-se afundar no puff, bêbado e com o hálito perfumado a cinza de muitos cigarros fumados. Não podia era fazer as duas coisas.
Para Pedro o acto de viver sempre lhe deixou dúvidas. Como é que se vive bem? Quanto dinheiro será necessário para isso? Qual o volume de sexo inconsciente e com quantas mulheres diferentes, será suficiente para nos saciar? Por quantos lugares da Terra teremos nós de deambular, para nos sentirmos parte do mundo? E quantas artes, ciências ou acções teremos nós de dominar, ou concretizar, para sentirmos a realização pessoal. Quantas árvores teremos de plantar, quantos filhos teremos de criar, e quantos amigos temos de fazer?
Acto contínuo, voltou a encher o copo, chegavam-lhe novamente os tremores e necessitava de coragem para prosseguir este pensamento.
 - O dinheiro não traz felicidade. – errado, incompleto! Quando se tem dinheiro, quem precisa de felicidade! – Certo?
Pensou nos banqueiros em Nova Iorque a agitarem o universo da economia, com a suas varinhas de condão, felizes, felizes..tão felizes que eles são. Quem precisa de felicidade, quando já se é feliz assim? Pensou também na sua mãe, a passar fome com dez anos de idade, e a morrer de cancro quase sessenta anos depois, ainda incapaz de contemplar sequer esses tempos com nostalgia prudente. Pareceu-lhe então claro as duas forças que dominam a vida: O dinheiro ou a morte! – Conseguiu reduzir a explicação do sentido da vida, ao lema de um salteador.
Mas pensou em si próprio também, na sua própria geração, a dos homens e mulheres, nascidos nos últimos quarenta anos. E, apenas conseguiu divisar a terrível realidade da situação, de que pela primeira vez, na história da humanidade, os filhos iriam ser mais pobres do que os pais. Iriam viver pior. E não será esse o principal objectivo da procriação? Criar uma vida melhor para aqueles que trazemos ao mundo? Onde está a felicidade então?
Na altura, como agora aliás, não acreditava em sorte, destino, predestinação, ou qualquer outro sinal de acção divina na terra. Encarava semelhantes crenças com assombro, como uma imposição inofensiva da ordem narrativa num mundo essencialmente fundamentalista, mas também, absolutamente aleatório. Se a mulher mais abnegada que conhecera, a sua mãe, morrera sem conseguir expiar os fantasmas da fome, sessenta anos antes, porquê então que um por cento da população mundial tem de acumular tanta riqueza, dez, cem, mil vezes mais do que ele ganhara em toda a sua vida até então. Estes pensamentos, estes sim, é que o aterrorizavam. Esvoaçavam-se sorrateiros por entre as pregas do seu cérebro. Inclementes associações de relação duvidosa. Melhor beber mais um gole, e tentar afoga-los de um só trago.
Juntou duas cadeiras da mesa de jantar, ao lado do peitoril da janela. Sentado numa, lançou as pernas sobre a outra, deixando descair o queixo sobre a mão direita. O gato, carente da sua presença, veio deitar-se aos seus pés, como sempre o fazia. Volteou-se três vezes sobre si mesmo, e finalmente lá se enrolou, num estreito espaço na cadeira, deixando cair a cauda sobre o focinho sonolento. Lá fora, a rua estava serena e húmida. Uma morrinha miúda aplainava o frio do dia anterior, enquanto lavava o calcete da estrada. A noite já ia a meio, mas, a manhã não traria a pressa da rotina. Hoje é Sábado, também, mesmo que não fosse, não é como se tivesse nenhum horário a cumprir.

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