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Governo Sombra - Prólogo


PRÓLOGO
Lisboa, Novembro de 1987

Um cemitério estreito no centro de uma cidade movimentada, indiferente, visto das janelas de uma pensão tristonha, fechada ao público à décadas, não é, em momento algum, objecto de alegre sugestão; e o espectáculo nunca aparenta o seu melhor, quando o seu ponto alto é a vista de folhas castanhas de Outono, esvoaçando sobre lápides que o tempo e os homens já esqueceram há muito.
Admitir-se-á que nenhuma influência deprimente está ausente deste cenário. Este facto é pungentemente sentido por um homem, já bem entrado na casa dos cinquenta anos, que em 13 de Novembro de 1987, ali estava, há três horas e meia, admirando-o. Isto é amiúde, pois de vez em quando, de tempos a tempos voltava para o interior do quarto e media o seu comprimento com passos inquietos, até se concentrar na verdadeira razão da sua presença ali.
- Em vez de a interrogar - disse ele finalmente. – faria melhor se lhe servisse uma boa chávena de café com leite bem quente.
À medida que ele ia falando, uma mulher, com uma longa cabeleira loira amarrada num puxo, mais se ia assustando, virando a cabeça, como se não o quisesse ver de todo. Examinava o quarto com olhar furtivo, as lajes, as traves do tecto, os móveis, tudo o que a sua posição fixa na cadeira, lhe permitisse ver. Foi de novo invadida por um grande arrepio, ao sentir o calor da tabuada penetrando-lhe repetidamente a carne dos pés, e lançou os olhos para o alto, não se mexendo um milímetro.
- Quantas colheres de açúcar deseja que lhe coloque? Uma? Três? Nenhuma? Lamento mas afinal já não tenho café disponível. Receio que só lhe posso oferecer Chicória com o leite, não se aborrece com isso pois não?
De olhos cerrados, a mulher procurava ouvir, através do seu monólogo, o verdadeiro sentido das palavras daquele homem, que a mantinha ali prisioneira. Por fim, ousou balbuciar algo.
-  Eu não sei nada.. O que queres tu de mim afinal? Eu trabalho, sou casada, tenho um filho..sinto amor.
- Como? – Retorquiu o homem. – Já aí volto, nada receie, aliás esteja certa de que nunca daí saí. Mas, deixe-me antes fazer-lhe notar a minha opinião sobre a Chicória. O diabo do cereal enfraquece a vista à gente no tempo frio – O seu tom de voz subiu a pique no fim da frase, justo no momento em que arremessava novo golpe de rins sobre a planta dos pés da mulher, lavrando-lhe a carne já chagada de estrias sangrentas com enésima tabuada a seco. – Não sei ao certo onde posso acertar com isto. Um destes dias tenho de passar a beber só leite simples. Parece que não há nada já que aguente um homem acordado.
- Eu não..
- Sim..sim..sim – Replicava o homem emulando-a. – Não sabe nada. Não sabe nada! NÃO SABE NADA! Eu não preciso que me diga nada..já sei tudo. O que preciso de si, você sabe bem o que é!
Ela teve um estremecimento, abriu os olhos com o sobressalto de um animal que acorda numa armadilha e cuspiu-lhe com desprezo.
O impenetrável algoz lançou a tábua encharcada para cima da cama ali ao lado, e fez um sinal imperceptível para um outro homem, que aguardava na sombra, ao fundo do quarto. Depois dirigiu-se novamente para a janela e juntou as mãos atrás das costas.
O novo protagonista, muito mais novo, nos seus trinta anos, igualmente bem vestido, de fato completo e gravata, e que até então havia permanecido em silêncio, ajudou a mulher a levantar-se do chão, e deixando que esta se apoiasse em si, marchou com ela para trás e para frente pelo quarto, obrigando-a assim a forçar os seus pés feridos e inchados, a uma marcha penosa.
- Ah, lá está ele ali mais uma vez. Certo como um relógio. – Prosseguia o homem mais velho, de novo no seu posto à janela. – Todas as noites ele aparece com as suas flores de organdi e o seu ar de tristeza fúnebre. Isto é que eu chamo dedicação pelos defuntos. E de noite, sobretudo. Mostra carácter num homem. Vê-se que não se faz às fitas de vir chorar lágrimas de crocodilo durante o dia, à vista de todos, para parecer bem. Gosto disso num ser humano. Carácter. – Acto contínuo, virou-se, sentou-se numa cadeira junto à janela e acendeu um cigarro. – Já chega de caminhada. Continua tu agora que já me doem as palmas das mãos.
Pegou numa capa dossier pousada na mesa, e deitou-a no seu colo, começando a folhear as páginas no interior. Fazia-o em gestos mecânicos, como se não pretendesse ler o que lá continha, pois já o sabia de cor.
- Duarte, Clotilde; nascida a 14 de Setembro de 1952. Engenheira Biomédica, formada no Instituto Politécnico de Setúbal, curso de 76, especialização em Biomecânica, muito impressionante. Pai e Mãe desconhecidos. Admitida na Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Vera Cruz em Gondomar, no mesmo ano de nascimento, com o número de matrícula 13651. Tristonho. Assim, nem pai nem mãe, nenhum documento, nem mesmo um registo de nascimento, apenas esta cédula de uma frieza administrativa, de capa cor-de-rosa. Ninguém no mundo, apenas um registo, e um curso superior. É o abandono numerado e classificado. Oh, mas espere..O que temos aqui mais há frente. Há um marido afinal..e uma criança aqui também, uma outra criança bastarda. Filho seu? – Declarou num tom provocante.
A mulher ergueu o rosto e falou, numa crise louca de exaltação, por entre o som abafado das saraivadas de pau que recebia nos pés. Ardendo com o receio do que lhe poderiam fazer ao filho.
-  Valho mais do que todos os outros! Sou melhor, melhor, melhor..Nunca roubei nada a ninguém, e tu roubaste-me tudo. Restitui-me o que me roubaste!
Os dois homens quedaram-se quietos por momentos, até que o mais velho dos dois, ainda com a capa no colo, levou à boca uma chávena quente servida de um termos, e sorveu um gole generoso.
-  É. De facto tenho de deixar de continuar a beber Chicória a estas horas da noite. De algum modo esta mistela abala-me as ideias. Começo a ouvir coisas estranhas. Será que lhe perguntei algo, para ter de ouvir este chorrilho de disparates. O que eu quero, é muito claro, Clotilde. Cristalino como esta infusão. Não te roubei ainda nada, mas tu vais fazer isso por mim, certo?
Havia um tal orgulho impotente em Clotilde, um tal desejo de ser mais forte, erguendo o seu corpo de mulher vergada, que o carrasco mais novo se sentiu embaraçado. Já não reconhecia a mulher loira, de olhos cor de avelã, de pescoço longo duma graça de lírio, que trouxeram para aquele quarto há dois dias atrás. Os seus olhos tinham-se tornado negros, na face moldada, o pescoço sensual tinha intumescido com uma onda de sangue.
-  Não me digas que és má? – Apenas conseguiu dizer este.
- Cala-te! – Foi imediatamente repreendido pelo mais velho. – Não te trago comigo para falares. Vens comigo para aprenderes, e mais nada, ouviste?
-  Sim.. Pai! – Respondeu o outro muito a medo.
Paf..
Foi a reacção imediata do primeiro.
Paf..Paf..
Prosseguiu em sequência rápida.
- Tu não me voltes a chamar isso em público, seu badameco de merda. – Sussurrou-lhe ao ouvido. - Nunca!
Quando a claridade aumentou, calculou que o Sol se preparava para subir no horizonte, dando lugar a um novo dia. Sob a cúpula das árvores no cemitério em frente, o seu brilho já surgia difuso, filtrado pela renda acastanhada dos ramos desnudos.
- E.. e ela? O fazemos com ela agora? – Questionava o homem mais novo, mantendo ainda uma postura amedrontada face ao outro.
Este, exaurido na sua figura corpulenta de homem cansado, ainda assim, não estava disposto a arredar pé das suas intenções.
-  Amarra-a à cadeira e amordaça-a para que não grite. Coisa que aliás ainda não fez este tempo todo. – Gritava-lhe ele directamente nos seus ouvidos. - Os teus gritos também, deixa-me que te diga, não deixam saudades a ninguém. – Acertou-lhe em cheio com o barrote no topo da cabeça. – Anda, vamos tomar um bom pequeno-almoço. – Já a meio caminho da porta, voltou atrás e debruçou-se novamente sobre a mulher, que gemia para dentro um arrulhar miúdo.
-  Ora, tu.. Eu cá não gosto de meias-tintas. Chateiam-me. Impedem-me de pensar. E ainda mais quando se tratam de meias-tintas mafarricos como tu, minha puta!
Naquele instante a mulher perdeu definitivamente os sentidos, e deixaram-na ali amarrada à cadeira, inconsciente.
Só depois do pequeno-almoço se apresentou a oportunidade para conversarem. O homem mais novo, ainda ressabiado com as estaladas que levara do pai, tentou timidamente chamar a atenção do outro, esperançado que este erguesse os olhos do jornal que lia, mas, como tal não aconteceu, encaminhou-se para o balcão do café, preparando-se para saldar a conta.
-  Onde pensas que vais? – Inquiriu-o rapidamente o pai.
-  Pode dar-me atenção por um momento? – Respondeu este.
Terminou a frase que estava a ler, baixou o jornal com relutância e revelou o seu rosto de cinquentão,  cabelo grisalho ralo, óculos sem aros, fato escuro e gravata discreta, próprios de um homem digno de meia idade. Era solicitador e talvez imaginasse que uma indumentária formal inspirasse maior confiança aos clientes potenciais.
-  Que tens tu para me dizer que mereça atenção especial? – Replicou.
-  Eu compreendo que o que fazemos é para o bem do estado, mas não estará todo este caso a sair dos limites? Afinal..bem..ela já teria dito aquilo que queremos, se o quisesse..
-  Para o bem do estado? - Riu-se. - És mais tonto do que aparentas, rapaz. O que em todo o caso, é sempre melhor, do que mostrar ser mais do que realmente somos. Deixa as considerações politicas comigo, está bem? Tu concentra-te no resto.
- No entanto o paizinho ainda há pouco me disse que eu estava ali para aprender. Então ensine-me tudo.  
-  Não sabes o que dizes pirralho, és muito novo ainda. Assim como assim, são estes tempos de agora, tudo vos parece fácil e complicado ao mesmo tempo. Não tens dinheiro no bolso, a barriga forrada? Não tens uma profissão respeitável, um bom cargo no governo que eu te arranjei? O que queres mais? Considera isto um passatempo. Um passatempo onde ajudas o teu país. É o dois em um perfeito. Está tudo dito.
-  É tudo verdade isso o que me diz, mas não me satisfaz..
-  Está tudo dito, já disse. Primeira lição que te ensinei, qual foi?
-  Respeitar a certeza dos mais velhos.
-  Respeitar a certeza dos mais velhos! Isso mesmo. Portanto respeita o que te digo. E se eu digo que aquela putéfia vai quebrar, então, ela.. vai ajudar-nos! E mesmo que não o faça, é vermelha até à alma, só isso já é suficiente para justificar o que lhe fazemos.
O tom exaltado da conversa começou a despertar a atenção dos outros clientes do café, assim como do empregado do balcão, que pareciam querer fulmina-lo com os olhos. Ao aperceber-se de tal, o filho tentou aligeirar o tom.
-  Parece que o paizinho é que ainda vive noutros tempos..
- Tempos bem melhores, acredita. Nesses tempos sabia-se bem quem era amigo, e quem era filho da puta. Agora é uma confusão de todo o tamanho. Pensas que o dito “chefe” em S. Bento, sabe de alguma coisa do que por aqui se passa? Balelas! Não sabe nada de nada, sente-se feliz da vida por ter chegado onde chegou. Raio de saloio algarvio. E todos os outros antes dele, eram iguais. Só houve um que pareceu mostrar-se mais teso do que os outros. E vê lá o que lhe aconteceu. Quis mexer onde não devia, e..Fiuuuu... – Fez com a mão o gesto de um avião em queda livre. – Limparam-lhe o sebo. É. No meu tempo, quem mandava no país, sabia tudo o que se passava, e não precisou de amigos fingidos para chegar onde chegou. Foi tudo ás suas custas, com pulso firme. Isso é que eram tempos.
- Seja como for paizinho, lamento mas receio que vou ter de me deixar deste “passatempo” por algum tempo. Os meus colegas no ministério começam a desconfiar de alguma coisa. Além de que..olhe bem para nós. Tenho sangue seco daquela mulher na gola e nos punhos da camisa. Quer seja pela grandeza da nação ou não, isto não é actividade para um homem de bem!
-  És um mole. Sais à tua mãe, que Deus a tenha lá em cima. Quero lá bem saber o que pensam os pilas murchas dos teus colegas de ministério, vais continuar comigo e vais gostar do que fazes, quer queiras quer não. Se quiseres continuar a pensar que é tudo pelo bem do estado, fá-lo, estou cá me marimbando para os teus motivos. Temos ordens a cumprir, ouviste? Ordens de quem paga. É preciso evitar a todo o custo que esta situação venha a lume, e sobretudo, precisamos de picar o cérebro daquela mulher. Vai fazer aquilo que precisamos que faça, cuidarei para que seja assim, verás! Não andei eu a perder o meu tempo a galá-la, para isto. E, senão o fizer, tanto pior. Temo-la nas mãos, pois ela sabe que a seguir tratar-lhe-emos do filho. E mãe alguma resiste a uma ameaça dessas.

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