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Beber uma morte anunciada.

Cada dia bebo mais. "Dorme meu pequeno mundo." - É um percurso mortal de um covarde, que prefere a lentidão líquida da morte, invés do abrupto suicídio brutal e espalhafatoso.

Cada dia bebo mais, bebo mais...É um intuito determinado. Perderei o emprego, a família, a vida...estou certo disso, acabarei como todos os bêbados que não desistem de o serem. Porquê?

Porque não consegui.

Aí está! Guardei um rancor no corpo, pela vida fora, até ao seu fim. Foi a rejeição daquilo que a me propus que me perdeu. Quis ser o que não me deixaram e jamais esqueci. Sou, portanto, um 'cliché'. Bebo para colmatar uma falha que não me coube por escolha. Morro para justificar uma rejeição que sinto não ter merecido. Acabo-me na pior regra do mundo artístico, não lhe ser merecedor!

Andei anos e anos nisto. Nesta determinação de atingir. Mandei tanta coisa para fora, tanto texto, tanta criatividade olvidada. Nem uma correspondência. É isto ser-se escritor? Também.

Não aguento. Há um climax a achegar-se. Sou fraco. Tenho egocentrismo a borderar a minha razão. Quero demasiado. Sinto que sou merecedor. Então porquê? Porquê?

Cada dia bebo mais!

Nunca chegarei aos 60. Nem os mereço. Mereço ser recordado, porque fiz o meu trabalho e apresentei a minha arte ao mundo. Mereço morrer  cedo, sim. Mas, não acho justo ser esquecido pelo que produzi, 

Sê-lo-ei mesmo assim. Este mundo desacreditou-me. Morro cedo e sem presença de futuro. 

Bebo!


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