Avançar para o conteúdo principal

Piquenas estórias de amore IX


A moça era indiferente à diferença, tinha medo dos objectos cortantes que por vezes os outros trazem nos olhos, e por igual receava os problemas existenciais e o peso de não dormir jamais. Tinha também a estranha capacidade de armazenar palavras na garganta e quando mais não as suportava, saiam-lhe chocalhadas em um frémito. Ficava o chão azul todo borrado de letras de faz de conta. Centenas de quilómetros de espaço e tempo em circunferências no chão, cheias de palavras sentimentais. 
A moça assustava-se muito com as diferenças, menos com as palavras-cruzadas e com as sopas de letras, e enquanto falava ecoava sons, invertia pronomes e golpeava o ar com movimentos bruscos. Era já a indiferença a tomar-lhe conta do entusiasmo. As crostas das palavras que ficavam, limpava-as às costas da cadeira, com os sons ainda agarrados ao coração.

A moça tinha também uma expressão inteligente e ausente, que fotografava a preto-e-branco quando lhe apetecia ser mulher. Memorizava coisas do futuro, muitas coisas em linha recta e não gostava de metáforas, apenas de bocas amplas, onde a saliva, à custa de ser tanta, dissolvia parte do sentido.
Assim, sem querer, sem causa e sem intenção, a moça ficou presa dentro de um moço, que era diferente a tanta indiferença, ficou ali, como um corpo abismado que sustém o ar, muito calado para sempre para não mais a perturbar.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A queda de um anjo triste.

Desafogados brilhos desta existência, quis olhar em frente, e vi somente escuro. Escuro, escória, lixo, lama e penetrante breu. Quis seguir em frente e não mo permitiram. Quis marcar presença, caí, e fui banido. Quis viver, e fui marcado a fogo com o rótulo do nada. Malditas palavras que me acendem esta vivência, pudera eu ser livre, e não viver por trás deste muro. Ser vento, ou poeira, e correr solto pelo esplendor deste céu. Malditas palavras que de mim emergiram, ainda mal as proferia, e já as via, abafadas em seu ruído, como se fossem pássaros, abatidos em revoada. Como eu mesmo, abatido assim, em tenra idade. Mas sosseguem, pois sou coisa irritante que insiste em não morrer. Malogrado pela estupidez do desprezo, sou, ainda assim, Homem! Homem! Homem... Estou vivo, e não desabo. Desafogado percurso que ainda mal começa, não verás teu fim nesta desdita amordaçada. Quis dizer o que quis, e não me faltou a vontade. Mais fáci...

...Poderia ser maior! Poderia ser um escritor, em vez deste blogue vagabundo que... foda-se!

  "On The Waterfront" 1954 - Elia Kazan

O Artista que faz falta Conhecer

Um dia desenhei um rectângulo largo em uma folha de papel-cavalinho, não foi salto nenhum, pois em anos antigos, já me tinha lançado a fazer rabiscos aqui e ali. Em pastel sobretudo, e uma vez cheguei ao acrílico, mas aquilo eram vãs tentativas sem finesse alguma. As artes plásticas são um mistério ainda, e uma das minhas grandes decepções como ser humano criador. Essa e a música. Creio até que terei começado a escrever por me faltar jeito para o desenho e para os instrumentos de sopro. Assim que voltemos ao meu rectângulo. Esquissei-o de vários ângulos e adicionei-lhes cornijas e janelas. Alguns sombreados. Linhas rectas e perspectiva autónoma, cor e até algum peso acumulado. Longe do real mas muito aproximado deste. Quando dei por mim tinha o Mosteiro (Stª. Clara) desenhado, em traços grosseiros e pôs-me feliz ter chegado ali, até me dar conta que cometera plágio. O meu subconsciente foi buscar o trabalho do Filipe Laranjeira ao banco da memória, e sem me pedir licença, copiou...