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Peido, logo existo!



Hoje, o Homem exalta-se a si mesmo constantemente.

Confesso que nunca me pensei como um moralista de bastidor, daqueles provedores de sofá que despejam dislates em frente ao televisor, e depois, insatisfeitos, rumam às redes sociais a mostrar ao mundo como a cabeça lhes chegou aos dedos. Ontem apercebi-me que sou. É uma idiossincrasia que talvez me tenha chegado com a idade. Certas noções de certo e errado começam finalmente a assentar cá dentro. 
Todos sabemos sobre o terrível incêndio, sobre as vítimas, a indefinição de culpabilidade, os deslizes da, por vezes, muito pobre comunicação social que os acompanhou. Todos já sabemos tudo sobre isto, demasiado quiçá. Por altura destes tempos imediatos, nem o mero escapar de um gás de algum mosquito se livra do escrutínio continuado e multi-interpretado. É assim que são as coisas agora. Muito úteis a espaços, em momentos e situações que de outro modo passariam despercebidas da maioria, como revoluções, catástrofes, violações dos direitos humanos etc. Em outros casos, mais rotineiros e disparatados roça os limites do tédio.
Todos sabemos também sobre a disposição do português para o altruísmo espontâneo. É um pouco como a saudade, palavra só nossa, que mal se consegue explicar em outras línguas. O altruísmo luso é igual. Andamos sempre façanhudos, a atirar pedras e a cuspir invejas, mas, quando chega a altura da união, ninguém que veja de fora nos explica direito. A este tema ocorre-me o levantar do país aquando da questão de Timor, momento singular do nosso inclinar para o bem do próximo, ou mais recentemente a terrível catástrofe das inundações na ilha da Madeira. Agora, malogradamente, aconteceram estes devastadores incêndios onde muita gente perdeu a vida, e, nos últimos dias, de todo o lado se levantam mãos ansiosas para auxiliar, viradas a Pedrogão Grande, Figueiró dos Vinhos e restantes lugares afectados. Muitas instituições assim o fizeram, criaram-se contas solidárias, movimentos espontâneos de cidadãos, criaram-se petições, páginas no Facebook, um voluntariado honesto, na grande maioria, e imediato de tanta, tanta gente que prontificou o seu tempo e trabalho em diferentes áreas e sectores da nossa sociedade, para ajudar. Só para ajudar. É motivo de grande orgulho saber que somos assim quando realmente importa, e nem me refiro apenas aos que sentem a necessidade de publicamente alardear esse feito. Falo das centenas de anónimos cidadãos portugueses que acreditam que a verdadeira solidariedade não é apenas um post no Facebook, uma moldura de luto, um repescar exaustivo de noções e imagens de efeito laxativo. A mão que ajuda fá-lo no terreno e sem expectativa de retorno ou notoriedade.
O que me remete ao meu redescoberto moralismo, adaptado à questão do mega-concerto solidário de ontem, em Lisboa, no Meo Arena. Se por um lado, é certo que toda aquela gente que ali trabalhou, artistas e vasta equipa de bastidores, doou tudo o que conseguiu na base da graciosidade, e em boa hora, se amealhou com isso, para cima de um milhão de euros destinados a quem dele desesperadamente o necessita, por outro, ao assistir pela TV ao desenrolar do evento, senti um certo desconforto em curtos intervalos, ao verificar que certos artistas, ou celebridades, ou personalidades televisivas, nem sei bem, pareciam quase competir umas com as outras, querendo se mostrar mais solidário que o anterior, em uma tentativa patética, e de muito mau gosto, de se mostrarem, de se elevarem acima dos seus pares no jogo da solidariedade, debaixo dos olhos de um país inteiro que os aplaudia, obviamente, pois somos tão altruístas quanto simples.
A fechar as festividades chegou o novo herói da nação, Salvador Sobral. Rapaz de muito talento, certamente, mas que começa a parecer um veadinho ofuscado pelas luzes brilhantes da fama avassaladora. Poder-se-á dizer, que este menino Salvador, não é tão ingénuo quanto parece, e que a sua desconcertante descontração, que tanto quanto sei, me parece genuína, encerra alguma dose de ironia face à avalanche de glória que o soterra. pelo que diz por vezes, pela maneira como age. 
Ainda assim, e de novo, o radar do meu moralismo apitou, dizer que: "Eu sinto que poderei fazer qualquer coisa que vocês aplaudem. Vou mandar um peido para ver o que é que acontece..." em um concerto solidário, que nem sequer era só seu, mas de um colectivo de artistas, é uma ultrapassagem perigosa aos limites da decência e da elegância. És grande de facto, Salvador, mas não tanto, nunca assim. Foi demasiado para o conseguir suportar àquela instância que havia de ser solene, de respeito ao luto, e mesmo tendo intelectualmente desconstruído aquele momento como uma valente estalada de luva branca, que ofereceu gratuitamente a quem pensa que Sobral se irá deixar devorar devagarinho pela fama, que aparentemente, para ele nada importa. Mesmo assim, o novo moralista não gostou. Achou baixo e reles, qualquer coisa demasiado subterrânea para um espírito que parece querer voar tão livre.
Aparte de isto, foi naturalmente um enorme sucesso este concerto, e conta agora sobretudo, fazer chegar aos destinatários o seu resultado ulterior. É necessário reconstruir floresta, vidas e esperanças, e claro, tudo isso não se atinge só por mera boa-vontade.

© Global Imagens

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