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As Crónicas do Senhor Barbosa IX



Depois de morrer, o interior do Senhor Barbosa nem apodreceu por dias e dias, como sempre acontece com todas as outras criaturas deste Reino natural de homens, bichos e flora tão despudorada, inseridos em algum ímpio crescimento desordenado.
Depois de morrer, ainda pareceu viver mais alguns anos e todos quanto o observaram assim o consideraram, pois, por conseguinte, era vivo que o sabiam, nunca morto, e aos vivos ninguém parece muito particularmente interessado em passar certidões de óbito precipitadas.
Depois de morrer, o Senhor Barbosa, ainda escreveu a sua própria elegia. - Esta! - Pôs-se à janela e começou a ditar palavras muito baixinho, e estas iam-se escrevendo por si até ficarem completas.
Nela, descrevia o seu fim prematuro, e quanto tempo precisaria para convencer os outros de que realmente falecera em virtude de tanto desprezo, tanto desrespeito pela sua simples condição eremita de Homem só! - Quando acabou apercebeu-se da inutilidade do que tinha escrito, mas, não o rasurou em excesso ou apagou completamente. Manteve-o escrito, porque sabia que só assim as coisas se manteriam eternas.
É que nunca quis nada retirado a ninguém em particular, nunca pediu grande coisa para si, nunca se inteirou também da sua crescente insulariedade, e em como esta lhe custou tudo. O senhor Barbosa andou a deambular invisível por um mundo onde já estava morto sem saber. Ao Senhor Barbosa só uma coisa importava, a consideração.
Talvez seja claro para muitos que os homens sós estejam vivos, apesar de tudo. Será talvez claro, porque rejeitam linearmente a existência de pessoas assim. A carne exposta consegue ser de uma resistência inaudita às investidas do desdém pestilento que a contamina. Mesmo a carne apodrecida, até a carne já morta. Apesar de já ter morrido há algum tempo, o Senhor Barbosa teve as suas fases de morte, e muitos até insistem em rejeitar essa clara putrefacção, mas ela existiu, e ele experimentou-as a todas. Talvez até seja verdade que esta condição rápida de existência, nem permita às multidões reconhecerem a morte nos Homens sós que já morreram sozinhos antes do seu tempo, apenas e só, porque não quiserem fazer parte deste desarranjo comum que a quase todos infecta.
Depois de morrer, o Senhor Barbosa não fez qualquer questão em criar mitos para si mesmo, só pediu um funeral de chamas e a eternidade. - Que não podia ser. - Disseram muitos na elegia. Que não podia ser porque a eternidade só está reservada para os excelsos, os capitães da glória, aqueles que estiveram vivos e mostraram cabalmente que a vida se faz de instantes poderosos, todos agregados em um dogma pré-estabelecido que assim os fará realmente eternos. Mortos ou vivos, os solitários não têm aqui lugar neste esquema tão hermético, e mais, aqueles que pensam vir a ser excepções a esta regra, acabarão piores. Completamente esquecidos, de propósito.
Depois de morrer, o Senhor Barbosa mentiu, e fingiu-se de vivo por mais alguns longos anos depois do seu funeral mental.
Mentiu cínico, foi hipócrita como um fósforo e depois realmente morreu para dentro, a sangrar pelos pulsos da alma ou pela goela silenciada, já não me lembro exactamente. Havia uma banheira escarlate na circunstância, e o Senhor Barbosa. O resto ficou na boca inexacta de quem eventualmente o encontrou. Por dias e dias, pensou-se que sofrera muito. Durante semanas e semanas, acreditou-se  ter sido medianamente louco. Por meses e meses e por fim, anos e anos, se descobriu finalmente que o Senhor Barbosa morrera muito tempo antes da sua própria morte.
Décadas depois, concluiu-se que os Homens até podem morrer assim. 
E que jamais serão referência do melhor da humanidade estes tempos, de agora.




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