(...)
"A noite está tomada por
estranhas sombras, compridas e escuras. Chegou a ser cruel a minha
observação, no rigor com que deixou a nu as minhas deficiências mais visíveis. Levantei-me
do chão quente e fui para casa, para comprar tempo, antes que alguém me visse
ali e me deitasse desaforos por mim abaixo.
Fiquei a olhar o quadro
anterior que ainda tinha fresco na memória, até me ocorrer um pensamento
obsceno, o mais belo de todos: E se tivesse sido León Xótsia o assassino da gata? Se tivesse sido ele também o precursor
daquele incêndio? E se fosse efectivamente, aquele meu único amigo, a mais deliciosa
e perversa criatura deste prédio? – Passou-me um arrepio eléctrico pelo corpo
todo. – Como seria bom se isto fosse mesmo verdade, imaginar-nos realmente deuses, ou um deus a
fazer por mim, para variar, em vez de contra mim, como se a maravilha da última
decisão fosse só a consequência da sua vontade. Imagino que tudo seria
perfeito, mesmo que, tão precipitadamente, entenda estar só na minha cabeça. Se
eu fosse mais simples, aproveitaria mais tudo, mas não sou, e isto já não tem
cura.
Um
estrépito de gente nova, bombeiros, polícias, filhos, netos, repórteres e
homens com câmaras, abarrotados de toda a parafernália imaginável, submergia
uns “Jardins do Paraíso”, tensos, na
noite do incêndio.
Claro
que aquilo era tudo um fogo de vista, mas o diálogo interino do prédio, acabara
de modificar-se, num abrir e fechar de olhos. Já não se viam tantos estranhos e
desconhecidos e novos neste lugar, desde o dia da catástrofe de oitenta e um,
quando parte da fachada exterior sul do edifício ruiu, em virtude da explosão
de uma botija de gás, na casa do Jaime Zíngaro. Este levava calmamente uma
frigideira ao lume com um bifito e acabou no cemitério feito em um fanico.
O
pátio estava já todo ocupado, assim como alguns corredores, do primeiro e
segundo andares, sobretudo. Lano estava sentado no canto noroeste do pátio,
junto às escadinhas que davam acesso à casa das máquinas, tem pedaços de relva
colados nas solas dos sapatos, um cobertor às costas, daqueles que parecem
iguais aos fatos dos astronautas, e um pequeno morrão de chama aceso que ainda
lhe dançava em silêncio nas costas de uma mão. Tenta levantar-se, mas obrigam-no
a sentar-se novamente: “O senhor está muito fraco, estacione aí mesmo e respire.”
- Cuspiu para a própria mão, apagou-a, e só depois é que respirou."
(...)
Excerto de Romance em construção...
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