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Uma tarde inútil em Abril


Em tardes tão pouco douradas, absolutas em desmaios vespertinos, nada me apetece de produtivo. Agacho-me à janela, dentro de uma concha de inutilidade, escondido da vista, para que ninguém lá fora possa reparar em tanto desperdício.
Tocam as músicas na mesma, mas baixinho como o mau cheiro dos pés dos anões, a Liz sussurra inconformada, o Robert desiste a meio da canção e sai de cena a retocar a maquilhagem. Mudo para bebop e animo um pouco-nada desta ronha entranhada. Bebo dois goles seguidos sem perder tempo a contar as porções. Que interessam as porções? As garrafas só choram quando lhes acaba o líquido. Tenho destes dias assim fodidos, tenho pois. Graças a Deus que os tenho. Se tivesse de ser normal todos os dias, enlouqueceria normalmente!
Lá fora, o mundo inteiro imobilizado na minha cabeça, enche-se de apelos luminosos, como a luz de um farol voltada ao mar de incerta tempestade. Rais' partam os donos dos cães que cagam tudo com os seus bichos mal ensinados. Malditos condutores que nada sabem sobre o respeito perene de uma praça modorrenta. - Olha, chegou agora mais um metro de gente!
Esperei pelo telefonema de um amigo que nem chegou. Toda esta espera tornou-se na melhor desculpa para ser inútil. Acabo sempre por detestar todas as ciências inventadas nestas tardes, resta-me o instinto, e o instinto diz-me para me esconder debaixo da secretária, não vá a senhora do rent-a-car aqui por baixo, desconfiar de alguma coisa imprópria.
Passaram mesmo agora quatro rapazes sem pressa, logo ali. Um deles subiu os braços a diminuir o balanço dos passos. Coitado! Sofreria tanto em busca de luz hoje, que teria de os esticar justo até às estrelas, e mesmo assim sentir-se-ia confuso com esse pobre clarão.
O grupo rodeia-o, num círculo a três, depois avançam pela praça, assim, em enxame barulhento. - Quem me dera ter tomates para abrir a janela e ouvi-los. - só lhes pressinto os sorrisos abafados de desprendimento. - Tivesse eu tomates e estaria lá fora, seria mais um a compor aquele círculo imperfeito. - Porque não? Só as imposições é que nos matam os mapas interiores. Se nos fingirmos de distraídos, podemos ter a idade que nos apetecer. Eu podia muito bem ser um rapaz novamente. Já nem precisaria de me esconder atrás desta janela. - Tivesse eu tomates e diria uma coisa ou outra a quem merece saber exactamente sobre a natureza humana, sobre a amizade. A cultura criou bandos de inúteis, como eu, que falam do alto de uma janela e depois escrevem preto-no-branco cheios de descaramento: "EU SOU CHARLIE ou KENYA ou a vagem insípida desta semana.
Nestas tardes pardacentas tudo diminui cá dentro, tudo! O combate incessante às más ideias constantes torna-se tão inútil como as tardes. Só me apetece disparar impropérios feitos petardos cirúrgicos, chorar invejas, gritar barbaridades aos passantes. É curioso saber que todos os dias, passa aqui uma senhora exactamente assim, que faz este caminho recto diário, zunindo palavrões de marinheiro aos incautos que se lhe atravessam à frente. Como lhe invejo a simplicidade. Dizer que ser louco é que é, e depois esconder o corpo e a cabeça no terror do que é socialmente impróprio, é coisa de meninos. De meninos que tocam em campainhas de estranhos e fogem a correr pelas ruas. - Tivesse eu tomates e seria um menino novamente, seria um quase-velho verdadeiramente louco por fim... Sou um Crica prostrado numa janela!
Mas, por razões que integram a estúpida intimidade intelectual da minha cabeça confusa, nada me parece de bom-tom. nada é tão acertado como me esconder da senhora do mini-mercado, que ainda há pouco me viu a passar com uma garrafa de uísque fresquinha, adquirida noutro lado qualquer. - Estás bonito rapaz? - Já sou parte desta janela, instalado a medo nesta sala que tresanda a fumo e a bebida. - Estou bonito estou... Fez cinco dias que saí de casa decidido a viver em pé e continuo aqui escondido, com olhos de vidro e alumínio anodizado. Parece-me definitiva a minha vontade de boicotar a acção energética da minha existência. Hoje é assim.
Amanhã lavo os vidros.

Comentários

  1. Vive -se um dia de cada vez...

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  2. Em boa verdade não vejo outra forma de os viver Maria. Um de cada vez, sim. Parece-me bem.

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