De que falamos quando falamos de amor? - A minha mãe morreu há quase dez anos, parecia dormir sossegada enquanto sofria aquele golpe fantasma da luta final. Foi numa terça-feira entre as dez e um quarto e o meio-dia, ninguém viu o exacto instante da sua morte. Nem sequer foi no Verão, quando a minha mãe morreu, todos os recantos da casa e do mundo exterior estavam frios, arrastando pedras, móveis, árvores e pessoas no rastro daquele gelo insensível, mas lembrei-me de tudo hoje.
Até nem sou uma pessoa fraca, mas a minha mãe parecia feita de nuvens no dia em que morreu, e ainda assim fui incapaz de lhe pegar ao colo, de uma cama para outra para lhe mudarmos a roupa. Fui incapaz de ser firme uma última vez por alguém que sempre me fortaleceu em tudo. Lá em baixo um carro triste aguardava na rua de cascalho miúdo. Lembro-me de ouvir uma buzina surda a reclamar. Também fui incapaz de de lhe pregar olho, abafei tudo num pó fininho dentro de mim. Era tudo tão inútil e de uma tristeza tão rija que não quis acreditar ser verdadeira. - Seria isto o amor? A total incapacidade! - A minha irmã e a minha tia, indómitas, vestiram-na para sempre, enquanto na sala ao lado, eu, o meu pai e os meus irmãos reduzíamo-nos perante grandes medos ancestrais. Os homens não sabem lidar com o amor quando este acaba. A nossa força especializou-se em coisas fúteis e nunca estamos à altura daquilo que realmente importa. É quase uma tristeza insensata, mas somos dependentes das lições que as mulheres nos ensinam, acovardámo-nos nos instantes fulcrais do amor, e a nossa vulnerabilidade passa por ser a nossa mais valia. - De que falamos afinal com as mulheres, senão dos nossos falhanços? Falhar torna-nos humanos, sensíveis, mais dignos do seu amor. - Dias depois, após as exéquias, os pró-formas, o velório, o tempo incerto, o funeral, as lágrimas, aquelas lágrimas todas choradas em conjunto. Após o fim de quase cinquenta anos de vida, o meu pai estava sentado na mesa da cozinha a olhar perdido para o fogão. Rodeamo-lo como lobos fardados de força a defender o resto da matilha, fizemos o almoço em tribo, abraçamo-nos sem mencionar um cumprimento que fosse à tristeza que pairava sobre a toalha da mesa, exangue naquela cadeira onde faltava toda a perfeição de sempre, e mesmo assim, o amor continuou a existir, apesar de tudo. Ainda hoje não falámos dele, com medo de nem sabermos daquilo que falaríamos ao certo. - De que se fala quando se fala de amor? - O melhor é nem saber mesmo, não vá o amor morrer como uma nuvem fraca à luz do sol.
Lindo!
ResponderEliminarSensível, honesto!
Mas o amor não acaba nunca...mesmo quando não se fala dele.